Brasil

Conselheiros tutelares enfrentam dificuldades

Gardiães da Lei, os fiscais da aplicação do ECA, têm disposição para trabalhar, mas enfrentam dificuldades

postado em 08/07/2008 09:23
Eles são os verdadeiros guardiães do ECA. Sabem os artigos decor, batem à porta das casas para apurar denúncias e, muitas vezes, percorrem longas distâncias, a pé, com o objetivo de garantir os direitos de crianças e adolescentes. Não à toa, 71% do diagnóstico da situação da infância nos municípios, de acordo com uma pesquisa da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), é fruto do trabalho dos conselheiros tutelares.

A função foi criada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente para consolidar o sistema de proteção aos brasileirinhos. E o mais importante: trata-se de um órgão autônomo, que coloca nas mãos da sociedade civil o dever ; e o poder ; de zelar pelos direitos da infância. Com membros eleitos pela comunidade, o conselho tutelar trabalha em conjunto com a Justiça, mas sem qualquer vínculo hierárquico.

A lei estabelece que todos os municípios brasileiros tenham um conselho composto por cinco membros. Dezoito anos depois da promulgação do ECA, 12% das cidades ainda não contam com conselhos tutelares. E a condição dos existentes está longe do ideal. A pesquisa Conhecendo a realidade, da SEDH, revela que 52% dos conselheiros consideram o local de trabalho ruim ou regular. Em 15% das sedes, faltam cadeiras e mesas para atendimento.

Em Abaetetuba (PA), onde a denúncia de conselheiros levou ao conhecimento público o caso da adolescente encarcerada com homens numa delegacia comum, por exemplo, apenas um computador tem acesso à internet. E os cinco conselheiros só têm à disposição três salas, o que dificulta a manutenção da privacidade, fator essencial num trabalho que se baseia, principalmente, na relação de confiança entre o conselheiro e a criança vítima de violação dos seus direitos.

Não é preciso ir tão longe para constatar a carência de recursos. No conselho tutelar de Ceilândia, um dos 10 que existem no Distrito Federal, faltam divisórias, as cadeiras estão quebradas e não há copos para servir água à população. No lugar, onde são atendidos em média 10 casos por dia, os conselheiros tiram dinheiro do próprio bolso para manter as condições básicas. ;Se eu quiser mandar um fax, por exemplo, tenho de pagar. Aqui, é muito comum as pessoas trazerem de casa aparelhos de telefone e cadeiras;, relata Selma Aparecida da Costa Santos, que cumpre seu primeiro mandato.

;Embora seja um órgão autônomo, o conselho depende do orçamento do governo para manter sua estrutura. E, hoje, o poder público é o principal violador dos direitos da criança. Uma coisa é você ter atribuições e outra é poder fazer valer o que o Estatuto determina;, critica o conselheiro Domingo Francisco, 34 anos. A conselheira Rogéria Moura de Sousa, 36, que atua em Samambaia, por exemplo, aponta a dificuldade de garantir o atendimento humanizado às crianças vítimas de agressões físicas e sexuais. ;A criança já é vitimizada. Chega numa delegacia comum e vê mais violência. Precisamos avançar muito na questão do atendimento.;

Dedicação de sobra
Se faltam condições adequadas, sobra dedicação. Com uma média de 600 atendimentos em um ano e meio como conselheira tutelar, Selma, 42 anos, é tratada com carinho pelas pessoas que recebe. Como Tamara*, 16 anos, ex-dependente química. ;Hoje, eu e a Selma somos amigas. Se trabalho hoje é graças a ela, que me encaminhou para o emprego;, diz a adolescente, que conseguiu uma vaga num viveiro de plantas. No caso de Fabiana da Silva Lima, 26 anos, mãe de três crianças com idades entre 7 meses e 3 anos e em situação de pobreza extrema, a conselheira foi atrás da inclusão da família em programas sociais. ;Agora, ela tenta colocar minha filha na creche. A Selma é meu anjo da guarda.;

Mãe de um jovem de 23 anos, a conselheira conta que a motivação para concorrer ao cargo foi evitar que outras crianças passassem pelo o que ela viveu na infância. Órfã de pai e mãe aos 8 anos, ela e os outros seis irmãos criaram-se sozinhos. Aos 12, saía de Ceilândia todos os dias para trabalhar como doméstica no Plano Piloto. O irmão de 14 anos também ajudava em casa, empacotando compras num supermercado. ;Era isso ou comer. Para comer, tinha que trabalhar;, conta. ;Naquela época, não havia conscientização sobre o trabalho infantil, muito menos fiscalização.;

Aos 16 anos, ela resolveu voltar a estudar. ;Tive de largar os estudos, mas tinha desejo de estudar, me formar. Então fui atrás e concluí o ensino médio;, conta. Todos os dias, Selma vê histórias como a dela. São meninas trabalhando como domésticas, meninos vigiando carros, vendendo doces no sinal. Mas, ao contrário do que aconteceu com Selma, essas crianças, hoje, têm quem zele por elas.

Para o presidente da Associação dos Conselhos Tutelares do DF, Antônio Roldino, porém, muitas pessoas ainda desconhecem a função. ;A impressão que a sociedade tem é que o conselho é um órgão de repressão. Trata-se de um ranço do Código de Menores;, acredita Roldino, que atua em Samambaia. O código ao qual se refere foi substituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e legislava sobre os ;menores em situação irregular;: de órfãos a adolescentes em conflito com a lei. ;É preciso saber, porém, que hoje a realidade é completamente diferente;, ensina.


O QUE É O CONSELHO TUTELAR

Órgão autônomo, o Conselho Tutelar está presente em 88% dos municípios brasileiros: são 4.880 unidades implementadas em 5.564 cidades. De acordo com uma pesquisa da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 49% dos conselhos têm carência de condições e recursos.

São atribuições dos Conselhos Tutelares:
# Receber denúncias de violações dos direitos
# Prover orientações
# Aplicar medidas de proteção, que podem podem valer para crianças e adolescentes, suas famílias, entidades de atendimento, Poder Executivo, Ministério Público, autoridade judiciária e para suas próprias decisões
# Assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente

Presença dos conselhos tutelares nas regiões:
Região - Percentual de conselhos com relação ao número de municípios
Norte 88%
Nordeste 70%
Sudeste 100%
Sul 94%
Centro-Oeste 92%
Brasil 88%

Escolaridade dos conselheiros
# Ensino médio completo: 55%
# Ensino superior ou mais: 15%
# Ensino superior incompleto: 15%
# Sem nível de escolaridade ou até o ensino médio incompleto: 15%

Avaliação do espaço físico, segundo os conselheiros:
# 48% consideram a conservação do local de trabalho boa
# 37% consideram que os locais proporcionam boa privacidade
# 15% dos conselhos não têm mobiliário básico (mesa e cadeira) para o atendimento da população
# 39% dos conselhos dispõem de veículo automotor para uso nas atividades
* Nome fictício, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente

Veja a relação completa dos conselhos tutelares no Distrito Federal

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