Brasil

Censura: confronto em campo aberto

Documentos revelam por que, no fim da ditadura, a repressão proibiu canções da Plebe Rude, de Léo Jaime e do Ultraje a Rigor

postado em 27/04/2010 07:00 / atualizado em 19/10/2020 11:21

O embate mais emblemático entre o rock e a repressão foi travado apenas um ano antes da Constituição de 1988. Em junho de 1987, a EMI-Odeon enviou a Brasília a letra de Censura, da Plebe Rude. Já no título, a canção não ocultava as próprias armas. Mas, para a surpresa da banda brasiliense, a reação da censora Ivelice Andrade Vargas, em 10 de junho de 1987, foi quase lacônica. Entre as justificativas para a proibição, nenhuma referência ao tom de contestação de versos sobre ;a única entidade que ninguém censura;. O problema, segundo ela, estava em outro lugar: ;A letra expõe em um dos seus versos a expressão ;porra;;, observa, no processo. ;O incrível é que, pouco tempo depois, a música foi parar no Chacrinha;, recorda o guitarrista e vocalista Philippe Seabra, que escreveu a música em 1983 com o baixista André X.

Philippe Seabra, da Plebe Rude: O palavrão foi, sim, a justificativa oficial contra a transmissão da faixa em programas de rádio. Mas o Correio apurou que, no Conselho Superior de Censura, em protocolo assinado pelo relator Aldo Calvet ainda em 1987, outras ;ofensas; (até inusitadas) pesaram contra o grupo. ;Evidentemente, a letra é agressiva ao órgão censório do princípio ao fim. A composição peca por certo exagero e pela afirmação de que ;ninguém censura a censura;, pois é de conhecimento geral que a censura não é apenas censurada como atacada por muitos.; Ao fim do texto, a decisão seca: ;A propagação de inverdades não deve merecer aprovação.; Afastada do público, Censura ganhou status cult. ;Faltaram apenas 10 mil cópias para conseguirmos o disco de ouro. O auê ajudou na divulgação e, para a censura, o tiro saiu pela culatra;, narra Seabra.

Outro que não se intimidou com as ameaças da Polícia Federal foi o goiano Léo Jaime. Em alguns casos, o impacto provocado pelo compositor era premeditado. A letra de Solange (versão para So lonely, do Police) é o caso mais conhecido, um desabafo bem-humorado contra Solange Hernandes, a temida ex-chefe da censura (localizada pelo Correio na primeira parte da reportagem sobre música na ditadura), a canção entrou no disco Sessão da tarde, de 1985. O roqueiro já era o aluno mais vigiado da classe do rock brasileiro. ;A proibição de algumas músicas era esperada, pois eu sabia que estava atuando numa área limítrofe e, em alguns casos, passando muito longe do que era crível como aceitável aos padrões da época;, admite. ;Porém, ao longo do processo, percebi que o autor era mais proibido do que as letras;, observa.

A vida não presta, um dos sucessos do músico, não foi liberada para as rádios. Os transtornos foram provocados por uma única palavra: bosta. O Correio teve acesso aos pareceres da censura sobre a canção, coescrita por Leandro Verdeal. Até hoje, os documentos eram ignorados pelo próprio cantor. O técnico Coriolano de Loiola Cabral Fagundes, em 24 de julho de 1984, classificou o verso ;Eu pensei: a vida é uma bosta; como ;grosseiro, chulo e nefasto à boa educação da coletividade;. O compositor tentou mudar o trecho para ;a vida é uma aposta;, mas a censura, em texto assinado pela própria Solange Hernandes, recusou a nova versão. ;Ela foi proibida e ponto final;, lembra Léo, 49 anos. Na letra de Papo de escola, foi a ;malícia; que incomodou os oficiais.

Ultraje: veto político

A censura não viu possibilidade alguma de conserto, porém, para os versos de Inútil, do Ultraje a Rigor. Logo no primeiro trecho, a música desferia um soco de mão fechada: ;A gente não sabemos escolher presidente;, metralhava Roger Moreira. Escrita em 1982, foi gravada em 1983. Nos shows, fazia barulho. Mas o músico não acreditava que a gravação seria aprovada. Com o aval do produtor André Midani, a WEA comprou o desafio. ;Lembro que demorou um bom tempo para a música sair. Uns três meses. Gravamos e não queríamos mudar nada;, conta Roger. Não deu outra: na primeira instância, Inútil foi punida por versos que, em texto assinado pelo chefe de gabinete da diretoria da PF, exibiam ;temática com mensagens contrárias aos interesses nacionais;.

A proibição da música atiçou o debate entre gravadora e censores. Após pedido de reexame, enviado ao Conselho Superior de Censura, foi liberada. Já Mauro Dundinha e Se você sabia (ambas de 1983) emperraram por conta de ;termos maliciosos; como ;sacaneou;, ;podia; e ;Dundinha;. Diante da dificuldade de compreender as razões da censura, a banda usava a estratégia de enviar diferentes versões de letras. O que nem sempre representava avanços na ;negociação;. ;Mary Lou, que é uma letra boba, foi proibida. Trocamos ;botava ovo pelo cu; por ;botava ovo pelo sul;. Mas não funcionava. Aí a gente simplesmente parava de mandar a letra. Ficava daquele jeito e pronto.;

Antes de assinar com a WEA, Roger entregava pessoalmente as letras ao departamento paulistano responsável pela análise das composições. Inspirado pelos dribles de Chico Buarque, Roger usou metáforas para evitar cortes. ;Achávamos que os censores eram umas antas. Uns caras que eram facilmente enganados. Veja meu caso: eu era um ninguém, um cara desconhecido, e mesmo assim tinha que mandar as músicas para a Polícia Federal.;


CENSURA
(Philippe Seabra/André X)

Unidade repressora oficial
A censura, a censura
única entidade que ninguém censura
Hora pra dormir
hora pra pensar
Porra, meu papai
deixa-me falar

Blitz para crianças? Não!


Não foi com segundas intenções que Evandro Mesquita escreveu A verdadeira história de Adão e Eva, em 1983. Composta para o especial infantil de tevê Plunct plact zum, da TV Globo, a canção narra com bom humor a festa da bicharada em cenário bíblico. Um homem clama ao Criador: ;O paraíso é muito pouco, eu quero um broto pra poder conversar;. A brincadeira da Blitz não agradou a um dos censores que examinaram a canção, contrário à sua radiodifusão. ;Os versos dúbios e maliciosos são inadequados à veiculação irrestrita;, determinou. Mesmo após recurso, não foi totalmente liberada. ;Não lembro dessa história. Será que ela foi vetada por desrespeito religioso? Bispo Macedo já atacava nessa época?;, espanta-se Evandro, que escreveu a música com Ricardo Barreto e Chacal. A Blitz estava na mira dos militares. Em 1982, as faixas Cruel, cruel esquizofrênico blues e Ela quer morar comigo na lua, as duas últimas do disco As aventuras da Blitz, não sobreviveram às tesouradas. Os LPs chegaram às lojas com trechos inaudíveis, riscados pela própria gravadora, para evitar o risco de apreensão. ;Acho que (nos censuravam) pelo tipo de poesia de rua, o ataque à burguesia e os palavrões. Eles não entendiam nada;, observa o carioca de 57 anos. ;Nossas canções sempre falaram nas entrelinhas, nunca fomos óbvios. Nossa política era diferente da que eles estavam acostumados a perseguir;, afirma Evandro. (TF)

Titãs adiaram Bichos escrotos


Os Titãs lançaram as canções mais provocativas da carreira sob as barbas da censura. Entre 1986 e 1987, a banda paulistana gravou canções como Polícia e Desordem. Mas, antes e durante essa fase de confrontação explícita, aprendeu a lidar com o jogo de pressões travado entre artistas pop e censores naquela década. ;Nós deixamos de gravar Bichos escrotos no disco Televisão (de 1985) com medo de que mutilassem o disco, como fizeram com a Blitz;, conta Nando Reis, que, além de ter participado da composição de Bichos escrotos, escreveu a polêmicas Igreja, vetada para as rádios. ;Muitos radialistas preferiam pagar uma multa para tocar a música. Houve um episódio em que, numa rádio, tocaram Igreja e um bispo do Rio telefonou esbravejando;, lembra. ;Nunca levei a censura em conta. Eu achava que tudo aquilo acabaria caindo: era completamente descolado de qualquer movimento de cidadania e direitos humanos.;

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