Brasil

MPT resgata 64 trabalhadores escravos

Em situação degradante, eles trabalhavam na construção de residências populares em iniciativa do governo federal

postado em 29/06/2010 07:00
Dormitório em Catalão, sem colchões, banheiro ou mesmo porta. Empresa teve que pagar indenizaçãoDenúncias de confisco de salários, instalações precárias e retenção de documentos pessoais levaram o Ministério Público do Trabalho a flagrar, em plena obra do projeto Minha Casa, Minha Vida, principal vitrine de Dilma Rousseff (PT) na corrida presidencial, uma ocorrência de trabalho escravo. Sessenta e quatro operários em situação degradante foram resgatados pelas autoridades atuando na construção do loteamento popular Evelina Nour, em Catalão (GO), numa ação que começou em abril passado. De acordo com o procurador do Trabalho da região, Antonio Carlos Cavalcante Rodrigues, parte dos trabalhadores havia sido trazida de Correntina (BA), Valência (PI) e Itumbiara (GO), contratados por José da Silva Cunha, dono da TJ Prestadora de Serviços de Jardinagem e ;gato;(1) conhecido no estado, especialmente na lavoura da cana de açúcar.

A TJ Prestadora de Serviços de Jardinagem foi subcontratada pela empresa que coordena o empreendimento, a Copermil Construtora Ltda. Diante das irregularidades, o Ministério Público do Trabalho fechou um acordo com a Copermil para indenizar os trabalhadores e mandá-los de volta para seus estados. ;O termo de ajuste previu o pagamento das verbas rescisórias e dos salários, totalizando R$ 105.165,51. Os trabalhadores receberam ainda passagens para retornar aos seus locais de origem. Quem quisesse continuar, poderia, mas agora contratado pela Copermil, não mais pela TJ;, explica o procurador Rodrigues. Segundo ele, é lamentável verificar que um projeto financiado em 60% pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), um benefício conquistado pelo trabalhador brasileiro, acabe se tornando meio para a promoção de trabalho escravo.

Embora estivessem alojados em casas, na área urbana da cidade, e não em lonas no próprio canteiro de obras, as condições de vida dos trabalhadores eram precárias, de acordo com Rodrigues. ;Não havia banheiro, porta ou energia nas casas onde eles estavam. Eles dormiam em cima de madeiras, sem colchão. Além disso, os trabalhadores não recebiam salários havia três meses. Seus documentos pessoais, como RG e CPF, e os profissionais, a exemplo da carteira de trabalho, foram retidos. Não existia jornada de trabalho definida. Eles atuavam de dia e de noite, o quanto fosse necessário para adiantar as obras. O que eles recebiam era apenas a alimentação. Diante de tudo isso, ajuizamos ação contra a empresa TJ e o seu dono, José da Silva Cunha, pelos danos verificados com a escravidão;, explica o procurador. Além disso, no 1; Distrito Policial de Catalão, há um inquérito policial em andamento para apurar o crime supostamente praticado por Cunha.

Responsabilidade
O procurador informou que exigiu, por meio de um inquérito civil, explicações da Caixa Econômica Federal, que financia o programa habitacional do governo federal, sobre a fiscalização nesses projetos. Em nota, a Caixa informou que a licitação para a execução da obra em Catalão foi feita pela Prefeitura Municipal de Catalão, que doou o terreno a ser utilizado. Diz, ainda, que a contratação da construtora é anterior às denúncias do Ministério Público do Trabalho e que, à época, a empresa contratada cumpriu todas as exigências previstas em lei. A assessoria de imprensa da Caixa destacou também não ter responsabilidade sobre a fiscalização dos projetos, ficando a tarefa a cargo do Ministério do Trabalho. E afirmou que, depois da fiscalização, a construtora vem cumprindo todos os termos acordados com o Ministério Público do Trabalho.

Tarcísio Pereira Valadares, um dos diretores da Copermil Construtora Ltda., afirma que todas as irregularidades foram sanadas e atribui as denúncias a um suposto jogo político. ;Não posso dizer que as denúncias são falsas, mas como estamos falando do projeto Minha Casa, Minha Vida, sei que tem muito interesse por trás de quem eventualmente não vai se beneficiar dele;, aposta. A despeito de sua empresa ter sido obrigada a arcar com as despesas trabalhistas no valor de R$ 105.165,51, em função dos 64 operários contratados pela TJ Prestadora de Serviços em regime de escravidão, Tarcísio diz não só que trabalha há muito tempo com José da Silva Cunha, dono da subcontratada, como que o contrataria novamente sem qualquer problema. ;Claro que buscamos a perfeição, mas nem Deus conseguiu ser perfeito. Ele (Cunha) sempre trabalhou direito comigo;, diz o empresário, cuja construtora opera em seis loteamentos do Minha Casa, Minha Vida em andamento tanto em Minas Gerais quanto em Goiás.

Promessas
É chamada de gato a pessoa que alicia os operários, geralmente em cidades distantes do local de trabalho para dificultar a ;fuga; do empregado. Os gatos costumam prometer transporte e boa remuneração, mas quase sempre retêm os documentos dos contratados, colocam-nos em alojamentos degradantes e utilizam o endividamento ; uma caderneta com débitos referentes à alimentação e ao alojamento ; como forma de prender o trabalhador ao local.


Memória
Mesmos problemas
Não é a primeira vez que obras do governo federal se tornam palco de exploração. Em setembro do ano passado, fiscais do Ministério Público do Trabalho resgataram 98 trabalhadores em regime análogo à escravidão em um canteiro de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na fronteira de Caçu e Itarumã, a cerca de 370km de Goiânia. Os operários, que trabalhavam no desmatamento e na limpeza de uma fazenda para ser usada como reservatório de água de uma usina hidrelétrica, dormiam em instalações precárias, sem água ou banheiro, e permaneciam sem salários por meses.

A forma de cooptar os trabalhadores seguia o padrão tradicional. Eles tinham sido contratados por ;gatos; ligados a uma empresa terceirizada que atuava na obra. Sem salários, os trabalhadores recebiam comida por parte dos ;gatos; e, dessa forma, iam acumulando dívidas, anotadas na caderneta. Depois da ação do Ministério Público do Trabalho, os operários foram indenizados e retornaram às suas casas. A Votorantim Energia, responsável pela obra, afirmou, à época, que tudo tinha sido regularizado e que lamentava o ocorrido. O projeto tem apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes). (RM)

Ouça entrevista com Tarcísio Pereira Valadares e Antonio Carlos Cavalcante Rodrigues




Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação