Brasil

Burocracia que cega a saúde brasileira

Rio de Janeiro tem mais de 3 mil pacientes na fila para receber uma córnea porque o único banco de olhos capacitado para realizar coletas está fechado. No Distrito Federal, o tempo médio de espera até a realização da cirurgia é de seis meses

postado em 07/08/2010 07:00
Numa partida de futebol na semana passada, Pedro Henrique Moreira, 21 anos, sofreu uma parada cardíaca. Poucos dias depois, médicos do Hospital de São Conrado, na capital do Rio de Janeiro, confirmaram sua morte cerebral. Mesmo envolvidos com o luto da perda, os familiares do estudante se preocuparam com a doação de seus órgãos. O fígado de Pedro logo seguiu para ser doado. Mas as córneas, que eram saudáveis, não tiveram como ser aproveitadas. Isso porque o Banco de Olhos do Hospital Geral de Bonsucesso, até então único do estado com infraestrutura para realizar as coletas, está com a licença perante o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) vencida há mais de um ano. ;É um absurdo que córneas jovens e sadias deixem de ser aproveitadas. Duas pessoas podiam ter voltado a enxergar;, lamenta o professor Henrique Moreira, tio do rapaz.

Diretora administrativa do banco de Bonsucesso, Ana Paula Martins explica que antes da data de vencimento foi solicitada renovação da licença perante o Sistema Nacional de Transplantes. Nesse período, a Vigilância Sanitária vistoriou o local e aprovou o alvará de funcionamento, mas ainda assim não conseguiu a autorização necessária para voltar a atender a população. Martins afirma que hoje são mais de 3.300 pacientes na fila de espera por um transplante de córnea no estado. ;Enquanto isso, os pacientes recorriam a Sorocaba (SP) com recursos do Rio de Janeiro, o que saía muito mais caro;, conta. De acordo com o Ministério da Saúde, foi solicitado ao banco a apresentação de uma proposta de melhoria no sistema de coletas. Martins afirma que o programa foi encaminhado. ;Temos pessoal e infraestrutura para realizar a captação de córneas, mas fomos impedidos de fazê-lo. Pior do que captar pouco é coletar nada;, argumenta. A equipe fazia em média 20 coletas de córneas por mês.

Coordenador-geral do Programa Estadual de Transplantes do Rio de Janeiro, Eduardo Rocha admite o prejuízo em ter um banco de olhos fechado por tanto tempo. ;Nesse período foram realizados apenas 27 transplantes de córneas em hospitais cariocas, todas provenientes de outros estados ou importadas;, diz. Depois de um ano sem nenhum registro de coleta do tecido, o Rio de Janeiro inaugurou no início da semana um banco de olhos público, no município de Volta Redonda, mas o banco de olhos da capital continua fechado. Em contrapartida, São Paulo tem 10 bancos de olhos distribuídos em todo o estado, e em 2009 conseguiu zerar a fila de espera por transplante de córnea.

Especialista em oftalmologia, Patryck Tzelikis afirma que ceratocone e problemas de distrofia são as principais doenças que danificam as córneas e em que a solução definitiva é o transplante. ;A ceratocone afeta a parte central da córnea, causando cegueira parcial e irreversível;, explica. Essa enfermidade é degenerativa e acomete jovens entre 18 e 25 anos. Já as distrofias são mais comuns em adultos e idosos, sendo que a distrofia de Fuchs é a que tem maior incidência. Segundo o especialista, 90% dos transplantes são realizados com sucesso.

Um drama brasiliense
Breno Ramires, 22 anos, e Sylvia Cardoso, 29 anos, dividem os mesmos problemas. Os jovens moradores do Distrito Federal foram surpreendidos quando receberam o diagnóstico de ceratocone. ;Estava perto de concluir o curso dos meus sonhos, e agora dependo da minha filha para ler;, lamenta a estudante de enfermagem. Mas também a desinformação e a burocracia atrapalham. Mesmo com as estatísticas otimistas, persiste o medo do transplante: ;Hoje minha visão é de apenas 10%, vejo vultos e tudo muito fosco, mas pelo menos enxergo alguma coisa;, argumenta.

Já o professor de matemática, depois da descoberta da doença, preferiu recorrer ao Hospital Oftalmológico de Sorocaba (SP). Mas depois de conseguir agendar uma consulta com os médicos do hospital paulista e fazer todos os exames, ele não conseguiu prioridade no tratamento.

;Só depois que eu descobri que levaria mais de um ano até fazer a cirurgia é que decidi correr atrás de tratamento em Brasília;, lembra o rapaz, que ainda aguarda marcação da primeira consulta.

Coordenadora da Central de Notificação, Captação e Doação de Órgãos e Tecidos do Distrito Federal (CNCDO-DF), Daniela Salomão afirma que o número de doações de córneas na região atende a demanda da população local. Hoje, a lista de espera por um transplante de córnea no Banco de Olhos do Hospital de Base tem 55 pacientes, e o tempo médio até a realização da cirurgia é de seis meses. Segundo o Ministério da Saúde, no primeiro semestre de 2010 foram realizados 6.722 transplantes em todo o país, um aumento de 3% comparado ao mesmo período do ano anterior. (CK)

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