Brasil

"Precisamos nos preparar para crise hídrica", diz presidente da ANA

Em entrevista ao Correio, Vicente Andreu alerta sobre a crise prolongada de abastecimento de água no país

Warner Bento Filho
postado em 17/06/2015 06:13
A crise de abastecimento de água veio para ficar. ;Precisamos nos preparar para uma crise hídrica de médio e de longo prazos, com componentes muito complexos;, alerta o presidente da Agência Nacional Águas (ANA), Vicente Andreu. O alerta vem de alguém aparentemente sem receio de discussões polêmicas. Em outubro, Andreu criticou o uso do segundo volume morto do reservatório Cantareira, em São Paulo. Pelas redes sociais, o ex-secretário de energia do governo do Estado, José Aníbal, chamou-o de ;vagabundo;. O insulto marcava o auge de uma crise que havia começado em fevereiro daquele ano, quando os técnicos da ANA identificaram o risco de desabastecimento na maior metrópole brasileira. O assunto foi levado à presidente Dilma Rousseff que, segundo Andreu, orientou que a agência prestasse o apoio necessário ao Estado, sem ;politizar; o caso. A ajuda foi oferecida, como conta Andreu nesta entrevista, mas a estratégia não funcionou e o caso virou ;um inferno;, nas palavras dele. Casos de desabastecimento como o de São Paulo podem se tornar mais comuns, conforme previsão do presidente da Ana. Segundo ele, 2015 será pior que os anos anteriores. Confira abaixo os principais trechos da entrevista, concedida em Petrolina (PE), às margens do rio São Francisco.



O ano de 2015 vai ser pior ou melhor que o de 2014?
Aqui na Bacia do São Francisco, a minha opinião é que vai piorar. Porque não houve recarga nos principais reservatórios do Semiárido. Não acumulou água. A perspectiva para o próximo período é de maior gravidade em relação a 2014. Vai exigir que não se diminua nenhuma das medidas que estão sendo tomadas. E é preciso considerar outras medidas ainda mais restritivas. Não se pode contar com uma volta à normalidade que ninguém sabe se virá. O presidente da Sabesp (Jerson Kelman) disse que nosso desafio era atravessar o deserto de 2015. Se soubéssemos que o deserto acaba, seria fácil. E se não acabar? Temos que ter a responsabilidade de dar para as pessoas a dimensão da crise, em lugar de passar um nível de segurança que, na minha opinião, não existe. Essa é uma mensagem desmobilizadora.

A crise veio para ficar?
Precisamos nos preparar para uma crise hídrica de médio e de longo prazos, com componentes muito complexos. Crises de escassez de água vão ocorrer com muito mais frequência, infelizmente. A irregularidade das chuvas veio para ficar. É muito provável que tenhamos que enfrentar períodos de seca mais frequentes. Chove num lugar e não chove noutro. A água no planeta é sempre a mesma. Na Amazônia, há uma sucessão de secas e enchentes. Salvador esteve debaixo d;água, enquanto a 100km dali há escassez. O ciclo hidrológico está alterado e isso potencializa as fragilidades que já existiam. Precisamos mudar nossos padrões de consumo. Fala-se muito no consumo da agricultura, mas 85% da população brasileira mora em cidades, o Brasil é urbano. E os padrões de consumo nas cidades são muito elevados se comparados com os indicadores internacionais. Em São Paulo, hoje, no meio da pior seca já registrada na cidade, cada habitante gasta, em média, 220 litros de água por dia. Isso precisa mudar.

Foi um erro usar o volume morto do Cantareira?
Sou contrário à ideia de que a otimização do uso dos reservatórios passa pela utilização do volume morto. Essa é uma estratégia para situações extremas. Precisamos melhorar a operação dos reservatórios com a água do volume útil. Toda vez que se usa o volume morto, necessita-se de uma quantidade muito grande de chuva para voltar ao volume útil. É o caso do Cantareira. No ponto que está agora, deveria usar. Mas o consumo poderia ter sido reduzido há mais tempo. Isso não foi feito e o risco aumentou. São Paulo retira hoje do Cantareira cerca de 13m; de água por segundo. Em janeiro de 2014, tirava 30m;. Se a redução tivesse começado fevereiro de 2014, haveria hoje volume guardado que permitiria chegar até o fim do período seco de 2016. Haveria mais de 150 milhões de metros cúbicos de água no reservatório. Nossa disputa com São Paulo não foi sobre usar ou não o volume morto. Foi sobre como usá-lo.

Foram feitos alertas ao governo do Estado?
Fomos nós que propusemos ao governo de São Paulo, em fevereiro de 2014, que começasse a se preparar para a crise. A presidente Dilma nos orientou a não politizar o caso. Pediu-nos que apoiássemos, que colocássemos o governo à disposição. Mas nossa intenção nunca foi correspondida, talvez por conta de uma politização lá em São Paulo. Nós e a ministra (do Meio Ambiente) Izabella Teixeira conversamos pessoalmente com o governador (Geraldo Alckmin). Chegamos lá com a intenção de colaborar. Mas eles queriam apenas que legitimássemos a operação do governo do estado. Tivemos alguns momentos em que a intensidade da polarização e a desconfiança foram muito grandes. No nível técnico, a discussão sempre foi boa, mas agentes periféricos transformaram isso num inferno.

Haverá água para a transposição do São Francisco?
A quantidade de água a ser utilizada na transposição é de 26m; por segundo, na primeira fase. A vazão de Sobradinho, no pior momento, será de 900m; por segundo. Os canais da transposição estão projetados para receberem até 127m; por segundo. Mas, para operar em mais de 26m;, a transposição precisa de situações hidrológicas favoráveis em Sobradinho. Hoje elas não estão dadas. Portanto, se a transposição começasse a funcionar hoje, a resposta é sim, há água.

A reforma do Código Florestal pode contribuir para melhorar a situação da água?
Se você olhar as imagens de satélite do São Francisco, vai ver que os usos da terra se encostaram no rio ao longo desses anos todos. Precisamos convencer as pessoas que a recuperação (ambiental) precisa ser feita. Mas quando se faz isso numa canetada, o proprietário não aceita. É preciso dar as condições a ele. A gente acha que, porque foi aprovada uma lei, o problema estará resolvido no dia seguinte. Não estará. É preciso convencer as pessoas, mostrar que aquilo é importante para elas, para a sustentabilidade das suas atividades. Se não oferecermos alternativas ou condições de adaptação, não vai adiantar. Há um problema social aí. Não adianta simplificarmos o processo e imaginarmos que basta uma lei, uma canetada, uma obrigatoriedade, para no dia seguinte as matas estarem recompostas.

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