Cidades

Emoção na despedida de Ítalo

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postado em 15/09/2008 07:57
Debruçada sobre o peito do filho nu, em prantos, a mãe implorou às enfermeiras do Hospital Regional da Asa Sul (Hras) que retiravam os eletrodos, depois de todas as tentativas da equipe médica para salvá-lo: ;Não tira. Ele vai viver de novo;. O filho não voltou a viver de novo. Morreu às 13h45 de sábado. Foi enterrado no fim da manhã de ontem, no Memorial Campo da Paz, em Santo Antônio do Descoberto (GO), a 50km de Brasília. A mãe o vestiu com o terninho branco que ele usou na formatura do jardim. Aos 8 anos, Ítalo Urany, portador de rara e grave doença que destruiu progressivamente o sistema neurológico, não resistiu a uma parada respiratória. O menino lutou como guerreiro. Chegou a voltar para casa, depois de 58 dias internado. Ao lado da família, viveu seus últimos nove dias. Chorou para ficar vivo. Muitas vezes, o choro foi interno, sem lágrimas. Os olhos se fixavam no vazio. Sem andar, falar e enxergar, a mãe se comunicava com ele pelo afeto. Ela diz que ele a reconhecia. No começo do ano, ainda sadio, Ítalo jogava bola e empinava pipa. Era um dos melhores alunos da sala. E fazia planos: ;Vou ser balconista de farmácia como meu pai;. Quando começou a perder a visão, pediu à mãe, como súplica: ;Tira essa coisa escura dos meus olhos;. Ela lhe prometeu que tiraria. Prometeu-lhe a vida. No início da tarde de ontem, na volta pra casa, mãe e pai tiveram que ser ainda mais fortes. Kelvi, de 5 anos, o irmão de Ítalo e agora filho único, precisará deles mais do que nunca. Kelvi também tem adrenoleucodistrofia (ADL). Há três meses, começou a sentir dificuldade pra andar e tem reclamado que seus olhos não mais lhe mostram as coisas. Em lágrimas, o pai dele, Edilson Urany, 28 anos, resigna-se: ;Eu vou fazer o que puder e não puder para que meu filho viva mais;. A mãe, Denise Araújo Cardoso, 27, fez da esperança sua força para viver. O corpo de Ítalo foi velado na Câmara Municipal. A cidade se solidarizou com o drama dos irmãos e fez uma corrente de ajuda para comprar o Óleo de Lorenzo. O remédio, segundo pesquisas científicas, não cura, mas ajuda a retardar os danos causados pela doença, principalmente se os sintomas ainda não se manifestaram. O medicamento foi revelado no cinema, em O óleo de Lorenzo. Estrelado por Susan Sarandon e Nick Nolte, o filme conta a luta incessante dos pais do pequeno Lorenzo para salvá-lo. Lutaram, também, contra a desinformação dos senhores de jaleco branco em relação à doença. Por conta própria, Mickaela e Augusto Odone pesquisaram e descobriram o óleo. A história real emocionou platéias no mundo todo, em 1992. Lorenzo, que descobriu a doença quando tinha 6 anos, morreu em maio, aos 30 anos, nos Estados Unidos. Ele não se curou, mas os sintomas cessaram. Os médicos, à época, lhe deram apenas mais dois anos de vida. Pelo menos 2 mil pessoas passaram pelo local onde o corpo de Ítalo foi velado. Gente que, mesmo sem conhecer Ítalo, acompanhou a história dele e do irmão pelo jornal. Desolada, a dona-de-casa Ivonete de Oliveira, 43, cinco filhos, lamentou: ;Eu nunca tinha visto esse menino. Desde que li a reportagem, comecei a rezar todos os dias. Vibrei quando soube que ele tinha voltado pra casa. Hoje, eu tô aqui, vendo ele nesse caixão;. Enxugando as lágrimas, ela refletiu: ;A mãe do Ítalo ainda tem que lutar pelo filho que tá vivo;. Luta sem fim Kelvi começou a tomar o Óleo de Lorenzo há uns 40 dias, mesmo período de Ítalo. Quando os pais receberam ajuda e puderam comprar o medicamento (custa R$ 591 e dá apenas para 15 dias), o mais velho já estava no hospital. Os sintomas da doença já haviam se manifestado mais gravemente. Depois que começou a tomar o óleo, Kelvi queixa-se menos da perna direita. Com o bracinho esquerdo engessado, depois de um tombo, ele foi ao velório do irmão. Sem entender a morte, nos braços do pai, ele perguntou: ;O Ítalo tá ali dentro?; E depois, chorando, pediu: ;Vamos embora;. O pai o tirou dali, enxugando, dessa vez, o próprio choro. Denise passou os dedos carinhosamente no rosto do filho. Depois nos cabelos. Beijou-o. Ainda no hospital, disse a uma prima, admitindo a pior das confissões: ;A gente perdeu o Ítalo, Dalva;. Dalva, também em prantos, tentou consolá-la. E lhe disse: ;Você terá que lutar agora pelo Kelvi;. A funcionária do Senado Cláudia Ximenes, 45, casada, dois filhos ; que acompanhou o drama dos dois irmãos pela série de reportagens do Correio e organizou uma corrente de solidariedade para ajudá-los ; foi ao enterro. Na capela do cemitério, para uma gente que foi ver Ítalo pela última vez, ela disse, com a voz embargada pelo choro: ;Ele lutou como gente grande. E hoje o céu está em festa. Deus vai receber um anjo. Infelizmente, eu já o conheci doente, mas vocês tiveram a oportunidade de conviver com ele todos os dias, de ver o sorriso, a felicidade dele diante da vida...; Agradecimento Quando não havia mais o que fazer, ao lado do túmulo, Denise jogou a derradeira flor em cima do caixão do filho. Mesmo com a dor que esmaga, Edilson ainda se preocupou em agradecer a ajuda que recebeu de uma infinidade de gente. ;Cada centavo agora será investido no Kelvi. Vamos fazer dele a nossa luta e esperança diária. Nem a dor da perda do Ítalo vai enfraquecer a gente;, diz. Brasília se comoveu com a história dos dois irmãos. O telefone da família, nos últimos 30 dias, não parou de tocar. Por meio de doações, chegou dinheiro para o óleo, para o leite especial, para os remédios que tomava. A cadeira de rodas, novinha, custou R$ 1,1 mil. Foi comprada por um dentista, que se sensibilizou com a história. Ítalo a usou apenas uma vez. Na primeira reportagem, na qual a história dos irmãos foi revelada, Edilson disse ao Correio, em relação à vida dos filhos: ;Vamos lutar sempre e não importa quanto tempo a vida possa durar;. Na manhã de ontem, Edilson e Denise tiveram a certeza de que o tempo é o que menos importa. No porta-retrato da sala, na formatura do jardim, o menino eternizou o sorriso bonito. Na memória dos pais, o sonho dele de ser balconista de farmácia. A vontade de assistir pela enésima vez ao Rei leão. Uma peladinha a mais no quintal. Uma pipa voando. Agora, é a vez de Kelvi lutar pela vida. Ele já começou. Arrancou um dentinho de leite. Riu da ;janelinha; que ficou. A mãe jogou o dente no telhado. ;Mãe, vai ficar ali para sempre?;, indagou. A mãe jurou que sim. Todo dia, ele olha para o telhado. Quando Ítalo voltou do hospital, ele cochichou no ouvido do irmão, pra contar a novidade. Nunca entendeu por que Ítalo não o ouvia. Mesmo assim, continuou olhando para o telhado. Ontem, também, não entendeu por que aquela gente toda olhava para o irmão que ;dormia; no meio daquele salão bem grande. Em casa, sem Ítalo pra conversar, ele voltou a olhar para o telhado e procurou o dentinho de leite. Kelvi ainda é muito pequeno para entender que a vida será feita de renascimentos diários. Como jogar um dente no telhado.

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