Cidades

A força da alegria

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postado em 21/09/2008 15:55
O bode morreu mordido por uma cobra. Mas há controvérsia. Há quem diga que foi um escorpião. Marileuza, que emprestou o nome à casa e era bailarina de maiô prateado, não faz mais parte do grupo. Virou evangélica e não quer mais ver seu nome ligado a espetáculos que não sejam de Deus. Marinaldo, o Homem-Aranha, largou o ofício. Foi-se embora com outra trupe. Aos 18 anos, o palhacinho Cadillac acabou de entrar no Exército. Teve que largar o picadeiro. A mãe de Cadillac, Maria de Lurdes Silva, 55, também se converteu. Mas Amadeus Barros da Silva, o patriarca da família, o homem que sonhou todos esses sonhos, continua lá. Aos 61 anos, ainda é Sansão. E com a força que possui na cabeleira, hoje grisalha, puxa um ônibus, um caminhão, um Chevette, um Monza, um Voyage, um Fusca, o que aparecer pela frente. ;Já puxei até um helicóptero. Tenho tudinho filmado, em fita cassete;, orgulha-se Sansão. Doze anos depois, numa coincidência pra lá de prazerosa, o Correio reencontrou o Espetacular Circo Marileuza. Sua saga, contada com exclusividade em fevereiro de 1996, encantou Brasília pela simplicidade e pelo amor como a família se dedicava àquele circo de lona rasgada. Tudo era improvisado. A história foi além de Brasília. O Brasil conheceu o Marileuza. Wendyo, o bode, (sim, minha gente, ele tinha nome internacional) era, sem dúvida, a principal atração do picadeiro. Um astro. Show de bode! Equilibrista, ele ficava de joelhos em cima de uma garrafa, a mais de 5m de altura. Agradecia os aplausos levantando uma das patas. Baixava a cabeça, em sinal de felicidade. A platéia ia ao delírio. Wendyo, importado do Piauí, criado com dendê, afoxé e acarajé na Bahia, era uma peça! Treinaram-no por três anos, até virar estrela. Um dia, um gaiato que assistia ao espetáculo, começou a imitar uma cabrita. O bode endoideceu. Desconcentrou-se do número, deixou a boquinha da garrafa pra lá e saiu circo afora atrás da cabritinha. Sansão não teve dúvida: capou Wendyo. Capado, o astro do Marileuza nunca mais deu bola para os berrinhos da falsa cabrita. Aí, dedicou-se ao ofício da arte do equilibrismo em garrafas. Todos os aplausos para Wendyo. Em 1996, o povo de Santa Maria não falava de outra coisa. Wendyo era a grande estrela. Aproveitando a fama, saiu por esse cerradão de meu Deus. Desbravou todo o Entorno de Goiás. Não houve um pedaço de terra que o Marileuza não tenha montado sua lona rasgada. O bode ficou tão famoso que passou a ter segurança. Havia o medo de que pudesse ser seqüestrado. O bode equilibrista em ação em 1996 Reencontro Nas proximidades de Santo Antônio do Descoberto (GO), a 50km de Brasília, num lugar chamado Condomínio Guarapari ; divisa do DF com Goiás ;, o Espetacular Circo Marileuza reergueu suas lonas coloridas. Não estão mais tão rasgadas. Em 1998, eles ganharam, num projeto cultural do governo, uma nova lona. Mas os furos, uma década depois, reapareceram. Ali, naquele lugar de terra batida, o sonho reacendeu a esperança daquela família. E do menino que, aos 10 anos, deixou Patos, na Paraíba, pra ser artista de circo. De longe, lá está ele. É um circo bem modesto, pobrezinho de tudo, mas é de verdade. Ainda há palhaços com suas brincadeiras ingênuas. Agora tem o Fumaça e o Simpatia, uma dupla imbatível. Nos letreiros enferrujados, lê-se: Big Circo Leone. Mas não era Espetacular Circo Marileuza? Foi assim durante anos. Marileuza, filha de Sansão, hoje com 23 anos, não quer mais saber da arte circense. Aceitou Jesus como seu único Salvador. A igreja não gosta dessa coisa de mulher usar maiô e se apresentar em picadeiro. Pediu ao pai que tirasse seu nome do circo. A família se reuniu para resolver o problema. O malabarista Genilson Barros, de 25 anos, um dos 11 filhos do homem do cabelo de aço, decidiu a questão que lhes roubou o sono. Numa sacada genial, tascou: ;Marileuza não existe mais. Agora, vai se chamar Big Circo Leone;. Leone? ;Achei esse nome bonito;, explica Genilson. Sansão achou muito chique o tal do ;big;. Dias depois, o novo letreiro estava pronto. Há nove meses, o circo voltou à ativa, depois da parada de seis anos (desde a morte do bode). Há 10 dias, sua trupe acampou nas proximidades de Santo Antônio. O líder comunitário Márcio Pereira, 43, ajudou o circo a se instalar ali. O povo quer saber o que tem de atração. A curiosidade e o tititi em torno do circo têm agitado a população. Meninos cochicham, espiam por baixo da lona. Oferecem-se para trabalhar em troca da meia entrada, R$ 2. Inteira? R$ 3. Sansão e sua família circense Queixo de aço Mas hoje, minha gente, haverá espetáculo, sim senhor! E dos bons. Sansão, que também é o palhaço Mazagão, guardou seu principal número para mais tarde. Em duas sessões, às 17h e às 20h30, ele arrastará, com a força do cabelo, um Monza 1984. João Marcos da Silva, 30, equilibrista e filho de Sansão, também deixará o povo boquiaberto. Conhecido como ;queixo de aço;, ele levanta, com o queixo, uma bicicleta. ;Levanto até uma mobilete, que pesa 80 quilos;, gaba-se. O irmão Genilson é malabarista. Também faz as vezes de locutor e trapezista. Ali, todo mundo faz qualquer coisa. E Jeová Macedo, 23, que nem é da família, mas se criou num circo na Bahia, juntou-se à trupe. Ainda trouxe a mulher, Meire de Oliveira, 21, três filhos, também bailarina. A dupla apresenta um número arriscadíssimo. Jeová joga facas (que ele chama pomposamente de ;facas indianas;) em Meire, que fica encostada, de maiô brilhoso, numa prancha de madeira. Jeová mira a placa e dispara três facas enferrujadas em direção à mulher. Parece um ninja. ;Até hoje, nunca errei uma;, ele se vangloria. ;Medo? Confio no Jeová. A gente faz isso há mais de cinco anos;, ela responde. E o espetáculo não pode parar, jamais! ;Resolvemos continuar com o sonho do nosso pai. Isso aqui é a vida dele;, emociona-se Genilson. Sansão, hoje diabético, garante que a força no cabelo continua a mesma. E a atração é feita com esmero. Começa ao pentear as madeixas grisalhas. Genilson e Marcos ajudam o pai a prender a corda no cabelo. Vestido todo de preto, o homem miudinho, de 1,59m, se transforma. Parece vir do além. E vira Sansão, como gosta de ser chamado. É inacreditável, minha gente. No picadeiro, arrasta o Monza. Fora, com o poeirão comendo, repete a façanha com um caminhão. Arrasta-o por 30m. O povo delira. Depois do espetáculo, Sansão se emociona: ;A força vem da experiência;, ele diz. E explica por que resolveu fazer tal número: ;Tinha um circo lá no Piauí. Um artista se ofereceu pra fazer a atração. Mas cobrava 50% da bilheteria. Aí, eu vi como ele fazia e resolvi fazer igual. Tentei até dar certo. Comecei com um Fusca, depois passei pra Rural, D-20, F-1000. Não parei mais. Virei Sansão;. Simplesinho assim. Jogador de futebol Wendyo viveu com Sansão durante 11 anos. E morreu exatamente quando se preparava para estrelar outro número no Espetacular Circo Marileuza. ;Ele tava aprendendo a jogar futebol. O bichinho era bom de bola!”, conta Sansão, até hoje arrasado. E relembra os gostos do bode equilibrista: ;Ele adorava comer pipoca. Fazia parte da família. Gostava de ficar debaixo de um pé de pau, na sombra, curtindo a vida. Era um menino danado;. Sem Wendyo e com o circo parado, Sansão entrou em depressão. Tristeza profunda. Veio o diabetes. Genilson e Marcos resolveram ajudar o pai. E levantaram as lonas. Agora, mais uma novidade: Big Circo Leone vai mudar de nome. Passará a se chamar Gran Circo Luart. Por quê? ;Luart lembra arte. É nome bonito. A gente quer oferecer o melhor pro público;, explica Genilson. Sansão achou o nome lindo. Marcos se comove com a alegria do pai. ;Ele é um exemplo de superação. O circo tá na veia dele há 50 anos.; Com os olhos marejados, o homem do cabelo de aço confessa: ;Vou terminar meus dias aqui. Não sei escrever, só fui pra escola durante 15 dias e assim mesmo pela merenda. Essa é a minha profissão. É a vida que escolhi. É o que sei fazer;. Carinhosamente, os filhos ajeitam o cabelo do pai. Ele precisa se preparar para mais um número. O espetáculo não pode parar. Por tudo que viveram, pelos sonhos, pela luta, pelo finado bode equilibrista ; o insuperável Wendyo. Seja Marileuza, Big Leone ou Luart, o que vale é levar alegria onde nem haveria motivo pra rir. Só por isso eles já mereceriam todos os aplausos. De pé, em sinal de agradecimento. Hoje tem espetáculo, sim senhor! Têm os palhaços Fumaça e Simpatia, o queixo de aço, o malabarista, o peito de rocha, o trapezista, a bailarina, o ninja que arremessa ;facas indianas;. E tem ele, Sansão! O homem que sonhou todos esses sonhos. O extraordinário Wendyo, em algum lugar, se fará presente. Essa história é genuína. É boa demais.

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