Cidades

Homem centenário conta os segredos da longevidade

Sentado na rede, debaixo do pé de jaca, em Taguatinga, João de 102 anos fala de amores, filhos e recita alguns trechos de suas poesias, feitas depois dos 90 anos

postado em 16/01/2009 08:13
Lá vem ele, caminhar compassado, e sua inseparável bengala. Está elegante. Veste calça de tergal cáqui e camisa mostarda de algodão. Na cabeça, uma boina. Para segurar as calças, suspensório. Na entrada da casa modesta, na CNC 15 de Taguatinga, uma jaqueira dá sombra boa. Debaixo do pé de jaca, uma rede. Ele se apressa em dizer: ;Ganhei de presente. Chegou em abril e veio de Teresina;. O dono da casa se senta ali. É bom pra embalar. A bengala repousa ao lado, pronta ao primeiro sinal. E a pergunta inevitável, feita pela visita que avisou que estaria ali poucos minutos antes: ;Como é que se faz pra viver tanto assim?; O homem que se embala na rede responde: ;Nem eu, nem ninguém sabe. É o supremo poder;. A visita não se satisfez. Quer saber mais. O dono da casa continua: ;Acho que, pra viver muito, a pessoa tem que entender que precisa ajudar a si mesma. Eu nunca bebi, nunca fumei. Ficar sem dormir, sem precisão, não pode;. Faz 24 horas que o homem de andar compassado completou 102 anos. É tempo demais. Um tanto de tempo. Tempo para contar histórias. Privilégio é poder ouvi-las, sobretudo se for debaixo de uma jaqueira. Cento e dois janeiros de uma vida impregnada de luta, desafios, paixão e renascimento. E, mais recentemente, de poesia. O homem centenário virou fazedor de versos: ;Já fui amado e querido. Hoje, não sou mais ninguém. Já fui consolo dos tristes. Hoje, sou triste também;... Sábado passado, numa escola pública perto de sua casa, teve o almoço dos seus 102 anos. Apenas a numerosa família ; 14 filhos, 33 netos, 19 bisnetos e dois tataranetos ; foi convidada. E essa longa vida começa longe daqui, nos confins do Piauí, num lugar chamado Uruçuí. Ali, nasceu João Alves de Castro Conceição. Menino pobre, filho caçula de uma família grande (18 irmãos), o futuro dele seria igualzinho ao de todos os meninos da sua terra. Mas ele queria mais. Aos 15 anos, entrou pela primeira vez numa sala de aula. Em apenas três meses, aprendeu a ler, escrever, somar e multiplicar. Era do que precisa para ganhar asas. Ainda rapaz, deixou o Piauí. Desembarcou tempos depois em Marabá, no Pará. Logo arrumou emprego. Colheu castanha e borracha. Ganhou um dinheirinho. Mas ainda queria mais. E deixou o Pará rumo a Baliza, em Mato Grosso, a bordo de uma velha canoa, com cinco pessoas. ;Era 28 de junho de 1928;, ele lembra, com memória invejável. Chegou quase quatro meses depois, em 16 de outubro. Na nova terra, fez de tudo um pouco. Foi garimpeiro, agricultor, tropeiro e mascate. Inaugurou uma escola na zona rural. Foi seu primeiro professor. Encantou-se pelas belas morenas. E se casou com uma bem mais nova que ele. João contava 36 anos. Sua Edith mal completara 16. Com a mulher, teve 14 filhos (dois morreram ainda criança). Um dia, sua Edith adoeceu. Os médicos diziam que era tuberculose. João pegou os filhos e veio morar em Brasília, em busca de tratamento para a companheira. Era 1966. A família desembarca em Taguatinga Norte. Sua Edith não resistiu. Morreu dois meses depois, aos 42 anos. João ficara sozinho, com 12 filhos pra criar ; a mais nova tinha 3 anos. E aqui o homem do Piauí virou feirante. Depois, parou na construção civil. Nascia um carpinteiro. E dos bons. ;Trabalhei na construção do Palácio da Justiça e do Buriti;, ele diz, orgulhoso. E tentou, mesmo morto de saudade de sua Edith, seguir a vida. Por procuração João disfarçava a solidão no trabalho. Mas um dia ela foi maior do que ele. Queixou-se para uma sobrinha, que morava aqui. A sobrinha daqui falou para uma prima, no Piauí. Juntas, as duas decidiram que o tio não mais ficaria sozinho. No Maranhão, Domingas, então com 25 anos, moça prendada, queria se casar. Falaram a ela sobre o tio e seus 12 filhos. João mandou uma foto. Domingas, 39 anos mais moça, gostou do que viu. E resolveram, mesmo sem nenhum contato, se casar. E assim fizeram. O casamento, aqui em Brasília, foi feito por procuração. A sobrinha de João representou a noiva. Semanas depois, Domingas desembarcou em Taguatinga. E encontrou, prontinha da silva, uma família com 12 filhos. João trabalhou ainda como nunca. Com a nova mulher, foi pai mais duas vezes. E o tempo se encarregou de encher mais essa história de emoção. Na finzinho de manhã de ontem, ainda sentado na rede que ganhou de presente e com o pensamento longe, João falou sobre sua Edith. ;Ela é incomparável.; Mas não se esqueceu de Domingas, que hoje tem 65 anos. E nem poderia: ;É um pedaço da minha vida;. A prosa continua sob a sombra da jaqueira. João conta histórias. Passava das 11h. Àquela hora, há 102 anos, o menino mamava. ;Nasci de madrugada. Já tô dentro dos 103;, observa, como se contasse que fará 25 no ano que vem. Lembra-se de uma página ruim da sua história. Um naufrágio, dentro de uma canoa, no Rio Araguaia. Viajavam ele, a mulher e cinco filhos pequenos (a mais nova tinha três meses). João salvou todos, a nado. Perdeu o pouco de economia que fizera para recomeçar a vida noutra cidade. E conta com gosto a recente viagem que fez a Teresina. ;Tinha 82 anos, dois meses e 11 dias que não ia ao Piauí;, contabiliza. Derrete-se ao falar de uma cidade que não mais conhecia: ;Hoje, tudo mudou, cresceu. Tem até prédio;. E lembra os sabores de sua terra natal: ;Comi arroz de Maria Isabel, canjica, peixe surubim e muita manga. É o gosto da minha infância;. Oscar Niemeyer Com as marcas do tempo, João enxerga com muita dificuldade. Ouve apenas com o ouvido esquerdo. Mas, ainda assim, tem uma saúde de touro. Caminha pela quadra todos os dias. Às vezes, vai sozinho, apenas em companhia de sua bengala. ;Papai sempre teve essa necessidade de liberdade;, diz uma das filhas, fã incondicional e cuidadora de suas poesias, Maria da Conceição Alves, de 52 anos. Ela entrega: ;Até hoje, ele dá bronca e nos aconselha;. Comovido, João faz uma confissão: ;Sinto uma felicidade que nunca pensei alcançar no fim da minha vida. Tenho a união dos meus filhos e o conforto que eles me dão;. Aposentado, ganhando um salário mínimo depois de mais de 60 anos de trabalho, o homem centenário sente saudade. ;Do tempo que eu trabalhava, do convívio com os companheiros e da luta do dia-a-dia;, diz. E ainda faz planos: ;Queria muito, um dia, conhecer o Oscar Niemeyer (101 anos). Não pra falar sobre o trabalho dele. Mas pra gente conversar sobre nossa meninice. Lembrar como era o Brasil naquela época, como tudo era diferente;. O fazedor de verso lembra a juventude e uma certa morena lá do Pantanal. E recita: ;No sertão de Mato Grosso, deixei uma morena que me deu seu coração pra recordar minhas penas. A morena era bonita, do jeito que eu desejava. E como eu queria bem. Tudo que me pedia eu lhe dava...; Passa do meio-dia e meia. A prosa tem que acabar. O homem de 102 anos precisa almoçar. Servem-lhe salada de tomate e alface, arroz, feijão com quiabo e galinha ao molho. Como o tempo, a vida segue. Sempre segue.

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