Cidades

Páscoa: o sentido de felicidade só muda de lugar

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postado em 13/04/2009 08:35
O entregador de água reuniu a família inteira para o almoço de Páscoa. E avisou que ninguém poderia faltar. Viúvo, o piauiense Joaquim Crispim, 55 (;caminhando para os 56 em junho;, ele diz, com orgulho danado da idade) caminhou pelas ruas sem asfalto da Cidade Estrutural. Vestiu roupa nova: calça azul e camisa branca. O sapato preto não escapou da lama. Encardiu-se. E partiu para a casa de uma das filhas, logo pertinho. Ali, Mirlene, que completou 24 anos no sábado e dançou forró até o dia amanhecer, esperava o pai e o resto da parentada. O barraco de madeirite onde vive com o marido e dois filhos estava cheio. Toda a família se reuniu para o almoço. Havia, na manhã cinzenta de ontem, 12 crianças e oito adultos naquela casa. Na verdade, não foi bem um almoço de Páscoa. Era um churrasco, mas o sentido era comemorar o dia do renascimento de Cristo. Joaquim disse a um dos netos que Jesus morreu e foi ressuscitado. Pedro, de 7 anos, filho de Mirlene e neto de Joaquim, sabe na ponta da língua o que significa Páscoa: ;É o dia que Jesus renasceu;. O marido de Mirlene, Antônio João Filho, de 37 anos, se encarregou da churrasqueira improvisada na entrada do barraco de madeirite. Também pudera. Cozinheiro de um famoso restaurante da cidade, ele diz saber o segredo certo do tempero. E não perdeu tempo. Levou para a churrasqueira quatro linguiças. O arroz e a farofa já estavam prontos. Um pedaço de carne também faria parte do cardápio. Um parente completou a festa: trouxe 12 latinhas de cerveja. No sofá velho da casa com piso de cimento bruto, as crianças, de chinela de dedo, esperavam o grande momento do almoço. Não teve ovo de Páscoa. O coelhinho se esqueceu de entrar naquela rua sem asfalto. Pedro diz que o coelho que põe ovos existe de verdade. E bate pé: ;Mas a professora falou que ele só vem na Páscoa;. Um mirradinho o contradiz: ;É Deus quem põe o ovo;. A discussão toma conta dos miudinhos. Os quatro pedaços de linguiça assam na churrasqueira. Tem cheiro de almoço. O dono da casa convida repórter e fotógrafo para acompanhá-los. Joaquim, o pai de Mirlene e avó de Pedro, está feliz. ;A gente só tem a agradecer: Há 8 anos, aqui não tinha nada. Nem água nem luz. Era porco, cachorro e carroça. Hoje, temos um endereço;, comemora. E sintetiza o sentido daquela reunião toda no domingo de Páscoa: ;A gente pode até não ter dinheiro, mas aqui todo mundo é unido. Temos paz. Páscoa é isso, né?;. O domingo em que Jesus Cristo renasceu está apenas começando. Na Estrutural, a vida tem uma lógica muito própria. Entende-se o orgulho de Joaquim quando ele fala em ter endereço. Na porta das casas, há placas que indicam a quadra, o conjunto e o número da residência. Numa delas, o orgulho escrito na placa: Deus lhe dê em dobro tudo que me desejares;. Noutra, um salmo: ;O Senhor é meu pastor e nada me faltará;. Crianças correm descalças entre as poças de lama. É mais um domingo, igualzinho a tantos outros cinzentos. Os ovos da Páscoa não chegaram ali. ;Coelho de Jesus; Longe da Estrutural, chegamos ao Itapoã, outra extremidade de Brasília. Ali a vida também tem um sentido muito próprio. Quem passa apenas por fora não imagina o mundo que existe dentro daquelas ruas em labirinto. Quatro crianças correm pelas vielas ainda sem asfalto da cidade que conta com 100 mil habitantes em oito anos de existência. Tiago Henrique, 6, Johnatan, 8, Marcos Vinícius, 8, e Thiago Pereira, 6 eram um só contentamento. Havia um motivo pra lá de especial: o coelhinho que põe ovos, graças ao sacrifício dos pais, deu as caras por lá. ;Eu sei, sim, o que é a Páscoa. É a comemoração do coelho de Jesus;, sapecou o pequeno Tiago Henrique. E quem é Jesus, pergunto. Ele devolve, louco pra devorar o chocolate: ;É Deus, o pai da gente;. A diarista Sinaura Lopes, 27, mãe do menininho esperto, conta o que preparava para o almoço de Páscoa: ;Fiz costela de gado, arroz, feijão, salada e macarrão. É o que a gente tem para fazer;. A meninada corre. Foi um dia especial. O ;coelho de Jesus; chegou àquele lugar tão carente de quase tudo. A vida segue em Itapoã. Ontem, num bar de esquina ; cujo nome está em letras garrafais na parede: 100% você ;, o reggae tocava animadamente. Homens e mulheres jogavam sinuca. É a alegria daquela gente que se diverte com tão pouco. A maioria do comércio fechou as portas. O mercadinho de Maria Aparecida de Jesus, paraibana de 45 anos, casada, seis filhos, sete netos, não. ;Quando se tem dívida (amanhã ela terá que quitar um cheque de R$ 800), não se pode se dar esse luxo;, explica. Passava das 13h e Maria Aparecida estava ali, atendendo as pessoas pelas grades que cercam todo o seu estabelecimento. ;Aqui tem muito assalto. Se não for assim, a gente não consegue.; O almoço da família? ;Vixe, nem comida fiz. Vou inventar um mexido de ovo depois;, planejava. Pergunto se, por acaso, ela não pensou em fazer um almoço para reunir a família. Um bacalhau, por exemplo, a tradição da Páscoa. ;Meu filho, tem 20 anos que não como um. A última vez que comi trabalhava como salgadeira numa loja na 402 Norte. A gente fazia o recheio do bolinho de bacalhau. Meus filhos mais novos nunca comeram. Nem sabem como é. Eu gosto muito, mas tá caro demais. Pelo preço do quilo, a gente come carne a semana toda.; Nesse momento, a pernambucana Terezinha Ferreira, 46, chega para comprar um litro de refrigerante. ;Vou receber minha família (filhos e netos) pro almoço deste domingo;, contou. O que é o almoço? ;É simplesinho. Fiz arroz, feijão, macarrão e frango assado. A gente tem que ser feliz com o que tem;, ela reflete. O almoço ;simplesinho; de Terezinha virou um banquete. A linguiça preparada no barraco da Vila Estrutural, pelo cozinheiro do restaurante chique, também. Os ovos de Páscoa dos meninos de Itapoã chegaram como tesouro. Eles se lambuzaram de felicidade. Ganharam o melhor presente deste domingo cinzento. Terezinha preparou frango assado com dedicação extremada. De toda a andança, uma constatação, pura, simples e claríssima: Páscoa é feita com o que se tem. E não importa em que lugar se esteja. Talvez seja esse o sentido da vida. Essa gente humilde e anônima sabe disso de cor. É capaz até de ensinar pra quem ainda não aprendeu.

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