Cidades

Cresce resistência a doação de órgãos

Rodolfo Borges
postado em 28/09/2009 08:35
Patrícia de Moraes Sousa espera por um par de córneas há sete anos. Portadora de oito graus de astigmatismo em cada olho, a vigilante de 34 anos aguarda na fila dos transplantes por uma oportunidade de voltar a enxergar normalmente, para fazer coisas simples, como um curso de manicure. Dona de um salão de beleza no Recanto das Emas, Patrícia até que consegue cortar cabelo, mas o astigmatismo não lhe permite enxergar os detalhes das mãos. Problemas como esse poderiam ser solucionados mais rapidamente se mais famílias de vítimas de morte cerebral autorizassem a doação dos órgãos dos parentes no Distrito Federal.

Dos 94 potenciais doadores falecidos identificados no DF durante o primeiro semestre, apenas 13 se tornaram efetivos, graças, em parte, a 28 famílias que não autorizaram as doações. O número representa 29,8% das causas de não efetivação da doação no período analisado (veja outros motivos na página seguinte) e deixou o DF acima da média nacional de recusas (20,2%). Quando atualizado para 18 de setembro, o percentual sobe para 31,8% ; com 107 potenciais doadores e 34 negativas. É o maior índice registrado desde 2003 (confira quadro abaixo), quando a Secretaria de Saúde passou a fazer esse levantamento. Como consequência, apesar de os transplantes de órgãos terem crescido 24,3%(1) no país em comparação com o primeiro semestre do ano passado, eles diminuíram de 19 para 18 no DF.

Apesar do sacrifício que pode representar para a família do doador, a doação dos órgãos de um indivíduo saudável que teve morte cerebral pode beneficiar pelo menos 11 pacientes que aguardam na fila nacional(2) de transplantes. ;Cada pessoa tem dois rins, dois pulmões, duas córneas, sem falar em coração, pâncreas e fígado, que pode ser dividido. Além disso, tecidos, como ossos e pele, também podem ser reaproveitados;, ressalta a coordenadora da Central de Captação e Distribuição de Órgãos da Secretaria de Saúde do DF, Daniela Salomão.

Segundo ela, o aumento da rejeição não tem uma explicação clara, principalmente porque foram realizadas campanhas nacionais recentes para incentivar as doações. A coordenadora lembra que as famílias não costumam dar explicação para a negativa, nem os profissionais da Central se sentem no direito de pedir qualquer satisfação. Mas quando os parentes abordam motivos para a recusa, as explicações mais recorrentes são a oposição de familiares que não estão presentes no momento e a pressa para sepultar o corpo.

Demora
É o caso de Antônio Bertoldo, 21, e Patrícia Carlos Neto, 18, que perderam a filha Maria Eduarda, de apenas 3 anos, há duas semanas. Quando receberam a notícia de que a menina tinha sofrido morte cerebral, na madrugada do último 15, os pais decidiram que doariam os órgãos da criança, mas, quatro dias depois, o procedimento para confirmar o diagnóstico ainda estava em aberto (leia Para saber mais) e a família decidiu não esperar mais.

;Desisti porque ela morreu de segunda para terça-feira e, na quinta-feira, a questão ainda não tinha sido resolvida;, lamentou Antônio, que trabalha como motorista e mora no Lago Oeste. O enterro da menina aconteceu naquela mesma quinta-feira e nem pôde contar com a presença dos parentes que vieram de cidades do estado de Goiás logo após a primeira confirmação da morte. ;Eles tiveram de voltar para trabalhar;, explicou o rapaz.

Para a psicóloga Cristina Marcos de Moura, a vontade da família em velar o parente o mais rápido possível é compreensível. ;O enterro é um rito de passagem. É a mesma coisa que o batismo e o casamento, independentemente da questão religiosa;, explica a pesquisadora-associada da Universidade de Brasília (UnB). ;Tanto que o luto é mais complicado para pessoas que não têm o corpo do parente para enterrar;, completa Cristina, que coordena um grupo de suporte a enlutados desde 2007 na UnB.

Quem espera pela doação, por outro lado, não vê a hora de passar pelo transplante. É o caso da artesã Marline Coelho de Oliveira, 28, que passa por dolorosas sessões de hemodiálise por conta de problemas nos rins.


1- Crescimento
De janeiro e junho de 2009, foram realizados 2.099 transplantes no Brasil, 988 deles só no estado de São Paulo. Durante o mesmo período do ano passado, as operações não passaram de 1.688. Na comparação entre os dois semestres, houve crescimento nacional da quantidade de transplantes de rim (30,28%) e fígado (23,17%), de 2008 para 2009.

2- Espera
De acordo com o último Registro Brasileiro de Transplantes, 59.944 pessoas aguardavam na lista nacional até o primeiro semestre. Dessas, 1.792 esperavam por coração, rins ou córneas na lista do Distrito Federal, o que não significa que eles moram na região. Como a Secretaria de Saúde do DF só realiza esses três tipos de transplante, os brasilienses que necessitam de órgãos como pâncreas ou pulmões entram nas filas de outros estados.

Para saber mais
Exames minuciosos

Para que o óbito por morte cerebral seja confirmado, o paciente tem de passar por dois exames clínicos e um complementar, feito para confirmar os anteriores. O diagnóstico desses exames deve mostrar que a pessoa analisada apresenta ausências de atividades metabólica, de perfusão sanguínea ou elétrica cerebral.

Cada um dos procedimentos realizados para confirmar a morte só tem valor se for conclusivo. Como nem sempre os exames chegam a um veredicto definitivo, eles precisam ser repetidos até a conclusão. De acordo com a Resolução n; 1.480 do Conselho Federal de Medicina, que estabelece os parâmetros para o diagnóstico de morte encefálica desde 8 de agosto de 1997, quando o óbito ocorre em pacientes acima de 2 anos, os intervalos entre cada exame devem ser de pelo menos seis horas.

Depois da confirmação, os funcionários da Central de Captação, que já haviam sido informados sobre o quadro do paciente, pedem à família do falecido autorização para retirar os órgãos. Se a resposta for afirmativa, a Secretaria de Saúde se ocupa dos possíveis gastos para a manutenção dos órgãos do doador. Os órgãos que puderem ser aproveitados são encaminhados para as pessoas que aguardam transplantes de acordo com uma lista de espera nacional. (RB)

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