Cidades

Morador do Paranoá percorre as ruas com sua Belina anunciando falecimentos

postado em 28/10/2009 08:15

Quando os moradores do Paranoá veem trafegando pelas ruas a Belina azul-metálica do músico João Gomes Pereira, 50 anos, mais conhecido como João do Violão, costumam ser acometidos por maus presságios. Do alto-falante instalado em cima do carro saem os anúncios de mortes de moradores da cidade. João do Violão convida a comunidade para todos os velórios e sepultamentos há 15 anos, de graça. A ideia de oferecer o serviço fúnebre gratuito nasceu depois da morte do irmão dele, Tião. Na ocasião, aproximadamente 20 pessoas compareceram ao enterro; 10 anos depois, João ainda encontrava conhecidos pelas ruas que não sabiam da perda do ente querido e perguntavam: Por onde anda o seu irmão? Para evitar que o mesmo constrangimento atinja outras pessoas, o artista criou o sistema de anúncio de mortes. A intenção é dar um funeral mais prestigiado a quem se foi.

João do Violão dá notícia triste há 15 anos: As famílias ligam para João e pedem o favor de avisar sobre os falecimentos. Como não há cemitérios no Paranoá, João ainda negocia com os empresários da cidade um tipo de ;vaquinha; para ajudar a alugar um ônibus para transportar a população ao local da cerimônia. Se a família do morto não tiver condições de arcar com as despesas da funerária, a comunidade arrecada a quantia necessária. Em alguns casos, João ajudou a vestir o corpo sem vida e prepará-lo para a despedida. ;Não tenho medo dos mortos, mas dos vivos;, afirma. Os sepultamentos chegam a reunir 300 pessoas.

Pelas contas de João, mais de 400 nomes já foram anunciados no alto-falante. Cada aviso tem duração de três horas. Até 10 anos atrás, João realizava, em média, quatro anúncios por semana. Hoje, faz apenas um ou dois no mesmo período. O último velório anunciado foi o do filho de uma vizinha que morreu assassinado. ;Em uma hora como essas, a mãe precisou de apoio. É um incentivo a mais para ajudar. Fazendo essas chamadas para os enterros, eu acabei acompanhando muito da evolução da violência no Paranoá;, acredita.

A base do texto é sempre a mesma: ;Atenção! Tenho o pesar de anunciar a morte de ;fulano;, que morreu em tal dia, de tal causa. Sairá um ônibus na hora ;x; para levar os amigos e familiares até o Cemitério Campo da Esperança;. Segundo João, as pessoas se sensibilizam e até choram quando o carro passa. Em alguns casos, ele cola uma foto grande do falecido no vidro lateral do carro, para quem não o conhece saber de quem se trata. ;Eu faço uma voz bem triste e embargada, que é para comover mesmo;, explica João.

Solidariedade
É hábito entre grande parte dos moradores do Paranoá comparecer aos enterros de desconhecidos apenas para prestar apoio às famílias. ;Tem muita gente que vai só porque viu o anúncio mesmo;, relata João. Valdivino Rios de Souza, 73 anos, já chegou a comparecer cinco vezes em uma semana ao cemitério. Ele admite que não conhecia todos os mortos, mas criou o costume de prestar solidariedade aos parentes de quem se foi. ;É a última despedida de alguém. É algo muito importante. Se não conheci a pessoa viva, por que não posso conhecer depois de morta?;, questiona.

Valdivino firmou um acordo com João do Violão. Quando chegar a hora dele partir, espera um anúncio de 10 horas seguidas convidando as pessoas do Paranoá para o enterro. ;Já avisei: não posso ser sepultado menos de 36 horas depois de morrer. Primeiro porque é esse o tempo de que o espírito, essa coisa que vive dentro da gente, precisa para se desligar. Segundo porque precisa de um prazo para chamar todo mundo para o velório;, explica.

A maior parte dos habitantes gosta do serviço oferecido por João. Apenas uma vez, um comerciante reclamou dos avisos sonoros. O lojista perguntou ao condutor do carro: ;João, já não chega de tanta morte?;. E João respondeu: ;Não fui eu quem matei. Meu trabalho é só avisar;. As famílias sempre agradecem a ajuda. ;Não cobro pelo serviço, mas às vezes alguém paga a minha gasolina;, diz.

O sepultamento mais inusitado que João anunciou foi, acredite, o da Capela São Geraldo, uma das primeiras igrejas da cidade. ;O templo foi fundado em 1966. Em outubro de 1993, o governador Roriz prometeu que ela seria restaurada, mas não cumpriu. Em 2006, a igreja veio abaixo. Desabou todinha;, lamenta. Na ocasião, João saiu pelas ruas com seu alto-falante em volume máximo para anunciar o triste fim da igrejinha. ;Foi uma comoção geral. As pessoas até choraram nas ruas. Eu chego a ficar emocionado de lembrar;, relata João, com os olhos marejados e a voz embargada.

Origens
Além de propagandista, João se diz um historiador do Paranoá. Mora no Distrito Federal há 40 anos. Ele foi um dos pioneiros da cidade onde vive. Nem só de morte é marcada a sua história. A vida também faz parte das lembranças. Quando chegou à cidade, trabalhou até como parteiro improvisado. ;No começo de tudo, tínhamos que ser um pouco de cada coisa aqui no Paranoá. Ajudei a fazer seis partos. Alguns deles ocorreram dentro do meu carro;, orgulha-se.

Na terra natal de João, Pirapora (MG), é costume percorrer mais de três quilômetros dentro da cidade em cortejo pela alma de quem faleceu. Depois da caminhada, as pessoas comem, bebem e tocam músicas em homenagem ao parente ou amigo. ;Desde pequeno eu aprendi a enxergar a morte como um momento importante;, lembra. A Belina de João pega no tranco. Às vezes ele tem de pingar álcool no carburador antes de dar a partida. Mesmo assim, jura ter recebido ofertas de até R$ 15 mil pelo veículo, do qual não se desfaz de jeito nenhum. ;Faço esse serviço de som porque os pobres não têm como avisar que morreram. Quando morre alguém rico, a TV avisa, o jornal comenta. Mas quando é pobre, só resta o alto-falante da Belina;, explica.

João já gravou três CDs com o anúncio da própria morte. Ele pretende deixá-los com um amigo de confiança, responsável por convidar o Paranoá para o enterro. ;Gravei um CD convidando em três turnos diferentes, afinal, não sei qual será o horário do meu enterro. Mas já pensou que incrível: eu morto e minha voz ecoando por toda a cidade?;, ironiza.

Rio, onde?
O nome Paranoá é uma variante de Paranaguá. Paraná significa rio caudaloso ou mar, e cuá é bacia ou cavidade. Paranaguá quer dizer enseada do mar, baía fluvial. A variante Paranoá tem o mesmo significado.

Terra de pioneiros
Em janeiro de 1957, com a chegada dos primeiros trabalhadores para a construção de Brasília e mais especificamente para as obras da Barragem do Paranoá, foi criada a Vila Paranoá. Após a inauguração de Brasília, em 1960, os pioneiros permaneceram no local, devido à necessidade de conclusão das obras da usina hidrelétrica. A Região Administrativa do Paranoá foi criada em 1964, mas, somente em 25 de outubro de 1989, o Decreto n; 11.921 fixou os novos limites da cidade.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação