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O arquiteto capilar de Ceilândia

Há 50 anos, ele tem o mesmo ofício: corta cabelos. Começou no endereço mais nobre de Brasília, o salão do Hotel Nacional dos anos 60. Colocou a mão em cabeça de gente importante e famosa. Hoje, bem distante do glamour, montou sua barbearia. E faz o que sempre fez - só que nas madeixas de zezinhos, chiquinhos, toinhos...

postado em 04/11/2009 08:20
Se aquela cadeira falasse... Nela, sentou-se muita gente importante. Gente que mudou a história deste país. Era um tanto de excelência, tanto meritíssimo, tanto coronel, tanto doutor, tanta autoridade, tanto artista... Hoje, na mesma cadeira, bem longe do glamour, uma outra gente se refestela. E como se solta, como se espreguiça. Não há metáforas, nem mais nem meio mais. É um tal de Tião, Zezinho, Macalé, Mundico, Tonho, Toinho, Pedrão, Anastácio, Benedito, Chico... E o dono da cadeira diz, com sinceridade impressionante: ;Aqui me sinto mais feliz. As relações são mais verdadeiras. É como se a gente fosse uma grande família. Descobri que a vida aqui é mais emocionante;.Ediberto das Chagas, piauiense que veio para Brasília na época da inauguração, faz sucesso com sua barbearia

Que história é essa? Vamos lá. Ao comecinho dela. Lá de Parnaíba, no Piauí, partiu um garoto de 14 anos, a bordo de uma velha Rural Willys. Dentro dela, o pai e a mãe do garoto e seus sete irmãos. Era dezembro de 1959. O pai, o destemido mestre de obras Francisco, catou a família e vislumbrou a possibilidade de ;ser alguém; na cidade que nasceria. Foram oito dias e oito noites sacolejando dentro daquela Rural. Até que chegaram. Pararam na Vila Planalto. O mestre de obras se virou em mil. Ali mesmo, com as economias que juntou no Piauí e vendo a carência do lugar, montou um comércio e uma barbearia.

O menino de 14 anos via o pai cortar o cabelo do povo com navalha. Pediu para exercer o mesmo ofício. No ano seguinte, meses antes da inauguração (começava 1960), o pai lhe disse que era ele quem tomaria conta da barbearia. E o garoto desembestou a cortar cabelos. Com navalha e tesoura. ;Aprendi tudo treinando nos cabelos dos peões;, ele conta. Brasília foi inaugurada. O menino do Piauí viu toda a festa. Da Vila Planalto, enxergava aquele mar de gente e ainda muita terra vermelha na Esplanada dos Ministérios.

Naquele mesmo dia, deu calo no dedo. O magricela nunca cortou tanto cabelo de peão querendo ir à festa do nascimento de Brasília. A festa durou o dia todo. No outro dia também. Foi festa a semana toda. A vida seguiu. O barbeiro completara 15 anos. Já era conhecido no lugar. Em 1962, mais ;velho;, ele teve uma grande chance na vida: foi trabalhar na barbearia do Tribunal Federal de Recursos. ;Com 17 anos, cortava o cabelo dos 13 ministros da casa;, ele lembra. E a memória não o trai: ;Cortei cabelo de Cândido Lobo, Oscar Saraiva, Cunha Vasconcelos...;

Ficou ali, aparando as madeixas daquela gente de toga, durante seis anos. Em 1968, mais um convite. E seria irrecusável. Apareceu uma vaga para ser um dos barbeiros do Hotel Nacional, um dos poucos da capital. E certamente o mais elegante da época. Hospedar-se ali era sinônimo de sofisticação máxima. Coisa de rei e rainha. E lá se foi o rapaz, agora com 21 anos, para o então salão mais chique da terra de JK. Eram quatro barbeiros. Ele era o mais jovem. E foi naquele lugar que Ediberto Galisa das Chagas colocou as mãos nas cabeças mais famosas do país à época.

De Elis Regina a Pelé

Por 18 anos, Ediberto exerceu o mesmo ofício, no mesmo lugar, na mesma cadeira. ;Vivi coisas interessantes ali. Cortei até a orelha do ministro Marco Maciel.; E apressa-se em justificar: ;Ele se mexia muito na cadeira;. No salão mais chique da cidade, dentro do hotel cinco estrelas, passaram personalidades que o barbeiro nunca mais esquecerá. ;Uma vez, a Elis Regina estava hospedada no hotel e pediu pra passar a máquina três no cabelo curtinho que usava. Ela gostava do pezinho bem feito;, recorda-se.

E a lista de gente famosa (imagine se já existissem essas tantas revistas de celebridades?) foi interminável. Na cadeira de ferro do barbeiro do Piauí, sentaram-se os jogadores Pelé e Jairzinho e os cantores Sílvio Caldas, Carlos Galhardo, Ivon Cury, Orlando Dias, Miltinho, Nelson Gonçalves. Até o intérprete da imortal Conceição, o sempre Cauby Peixoto, deu as caras por ali. Estava chiquérrimo. Vestia blazer claro e calça escura. Sapatos brilhosos. Nos dedos, muitos anéis. ;Era um homem muito educado;, conta.

Pela sua cadeira de ferro maciço, suas excelências, principalmente elas, falavam de tudo. Umas mais contidas. Outras menos. ;Tem coisa que ouvi que jamais posso revelar;, diz. O barbeiro aprendeu a não ter ouvidos nem boca. ;As conversas sobre as amantes eram picantes, mas eu não sei de nada, não ouvi nada...;, desconversa, às gargalhadas.

Fim de 1968. O homem que cortava cabelos completou 39 anos. Já era um profissional conhecido e respeitado na cidade. Um desses deputados, uma dessas excelências que cortavam o cabelo com ele, de tanto se achar bonito depois do trabalho que Ediberto fazia na sua cabeleira, sapecou a pérola: ;Você não é um barbeiro. É um arquiteto capilar. Você não corta cabelos, mas desenha;. Essa excelência realmente gostava dos cortes do barbeiro do Piauí.

Pois bem. O agora arquiteto capilar juntou um dinheiro bom, principalmente com as generosas gorjetas que ganhava dos clientes chiques. Comprou carros. Teve Opala, Maverick, Dodge. O homem era um luxo só. Aí, ele resolveu ser dono do próprio negócio. Associou-se a um salão no Edifício Goiás, no Setor Comercial Sul. No For Men, Ediberto trabalhou três anos. Ali, a clientela passou a ser de profissionais liberais ; advogados, médicos, engenheiros...

A vida seguiu. Não havia mais celebridades, mas as gorjetas continuavam boas. A clientela era de peso. A sociedade se desfez, depois de um longo período. Novamente como empregado, Ediberto foi trabalhar numa barbearia do Aeroporto Internacional. A rapidez, ali, era sua marca registrada. Passageiros em trânsito não podem esperar. Ficou ali por dois anos. Mais uma vez, sentiu vontade de ser dono do próprio salão.

Mesma cadeira

Primeiro, ele viu o ponto. Acertou o preço. E alugou o imóvel por R$ 350. Casado pela quinta vez, agora com a professora Joana Galisa, 53, o arquiteto capilar batizou o estabelecimento com o nome da mulher: Barbearia JG. E é ali, na QNO 5 do Setor O de Ceilândia, que há um ano e meio Ediberto abriu seu derradeiro salão. Mas ele queria a mesma cadeira do Hotel Nacional. Descobriu que ela estava numa barbearia do Setor Hoteleiro de Brasília.

Ao chegar lá, descobriu que, além da cadeira dele (reconhecida pela alavanca), havia mais uma da mesma época. Comprou cada uma por R$ 3 mil. As cadeiras têm mais de 50 anos e foram fabricadas especialmente para o Hotel Nacional. Levou-as para Ceilândia. Lá, de segunda a sábado, exerce o único ofício que conhece na vida. ;Já teve gente que me ofereceu R$ 5 mil por cadeira e eu recusei;, ele diz. O corte é feito com a mesma e velha tesoura.

Hoje, o homem de 64 anos, pai de cinco filhos, avô de cinco netos, cabelos bem grisalhos, calça de risca de giz, camisa branca, sapatos pretos e meias combinando com a calça, virou barbeiro num salão modestíssimo, ao lado de uma loja que vende frango assado. O corte custa R$ 10, há uma rosa de plástico decorando o balcão (presente da mulher) e o piso é de um material emborrachado que lembra os assoalhos dos antigos salões dos anos 1960.

E parece ; pelo menos jura ele de pé junto ; nunca ter se sentido tão feliz. ;O povo é mais espontâneo. Me deixa mais à vontade. Lá (no Hotel Nacional), se fazia reverência para os deputados e pros ministros. Tinha que chamar de excelência e meritíssimo. O tratamento era especial, formal demais. Aqui, não tem nada disso. O dialeto é outro.;

Ediberto conta o tamanho da espontaneidade daquela gente: ;O povo passa aqui na porta e pergunta, brincando: ;Corta cabelo de corno?; É assim. Nem gorjeta tem...;. O segredo de cortar cabelos há exatos 50 anos? ;É gostar do que faz. Não tem cabelo difícil nem ruim. Tem profissional que não gosta do que faz e por isso não aprende a cortar.; No novo endereço, o homem que tocou no cabelo de gente importante hoje forma sua mais nova clientela. ;Aos poucos, o povo tá tendo confiança em mim. Sei que vai levar ainda um tempo;, avalia.

Esta é a história do homem que aprendeu a chamar gente de excelência e hoje corta cabelo do Toinho, do Zezinho, do Manoel, do Chico, do Zezão, do Sebá, do Riba... Talvez a vida ali seja realmente mais concreta. Dá até pra entender o tamanho da felicidade do arquiteto capilar de Ceilândia. Viva a vida real.

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