Cidades

Torneiro mecânico é um pioneiro cheio de ideias

postado em 09/12/2009 08:12
Os olhos da cor do céu são a única placidez possível em Iremar Carlos Ferreira, o Carlos Paulista, 74 anos. Todo o resto é veemência. Os braços se agitam, a voz se amplifica, ele ri como uma criança e se entusiasma como um torcedor em dia de decisão. O morador de uma casa modesta, rendilhada de bandeiras dos estados brasileiros, é um ativista da memória candanga. Nos últimos anos, tem sido notícia nos jornais e nas emissoras de televisão por conta de seu movimento Consciência Nacional e por sua luta pela preservação do patrimônio histórico e da memória candanga. A Ponte do Bragueto (imagem de 1975) quase não vingou: ele interveioCarlos Paulista transborda o tempo todo. Vibra com o que faz e se exalta na defesa de suas ideias e de seus projetos. Tem mais de 50 invenções, entre as quais uma máquina de movimento contínuo que gira, e portanto produz energia, sob o efeito da água dentro de linguetas de ferro em forma helicoidal (como se fosse uma mola). Inventa o tempo inteiro. Por esses dias, está pintando as lâmpadas para os enfeites de Natal da rua onde mora, "a única decorada de toda a Candangolândia". Duas paredes da sala de sua casa são pintadas com o mapa-múndi e as bandeiras do Distrito Federal e do Brasil. O bravo candango Carlos Paulista queria ser um bandeirante como aqueles que atravessaram a região onde mais tarde seria fundada a cidade de Batatais (SP), onde nasceu. "Sempre li muito, desde menino. Meu pai era o único morador da cidade que tinha assinatura de um jornal da capital." Foi nessa leitura diária que o jovem Iremar soube que a nova capital seria construída. Tão logo pôde, largou São Paulo e veio para Brasília com o desejo de "querer dobrar o Tratado das Tordesilhas com Juscelino." Uma cidade em construção era um farto campo de trabalho a ser explorado para quem tinha o ofício de mecânico de motores a diesel. "Naquela época, não era qualquer um que consertava esses motores. Qualquer um mexia em motor de combustão a gasolina, mas a diesel era raro". Carlos Paulista consertava tratores e geradores, dava assistência técnica às construtoras e passava alguns apertos. O maior deles foi no dia em que não conseguiu desvendar o mistério que havia paralisado o grupo gerador da obra da Ponte do Bragueto. Iremar Carlos Ferreira, o Carlos Paulista, ao lado de sua mais recente invenção, a máquina que produz energia a partir de água nas linguetas de ferro"Passei o maior aperto. Eu não conseguia localizar o defeito do motor. Ele funcionava e voltava a dar pane. E os engenheiros ficaram apavorados. A Barragem do Paranoá já havia sido fechada e os motores funcionavam e voltavam a dar pane. Os engenheiros precisavam tirar os pilotis da ponte e, com a água vindo, ficaram doidos. Aí o meu patrão, um excelente mecânico, descobriu o defeito. Ele me mostrou e nós fizemos o conserto, o motor voltou a funcionar e a ponte foi concluída antes que a água subisse". Carlos Paulista conta essa história com o rosto vermelho de um menino vibrando com relatos de aventuras. Aventuras O bravo candango vibra do mesmo modo quando conta de suas muitas peripécias na ZBM, a mítica zona do baixo meretrício no final da Avenida Central, na Cidade Livre. Houve um tempo, ele diz, de existirem mais de três mil prostitutas na capital em construção. "Eu não ouvi, mas já me contaram que Juscelino disse que, se não fossem as prostitutas, Brasília não seria construída". Carlos Paulista é prova disso: "Poxa vida, eu era jovem, todo jovem precisa de sexo e não tinha mulher aqui. Se não houvesse as prostitutas, a gente não ficava aqui. Ia tudo embora". O torneiro mecânico morava ao lado da ZBM. "Toda noite eu dava um pulinho lá", ele conta, e dá uma de suas gargalhadas de bocarra aberta. Carlos Paulista conta uma história cinematográfica: todas as tardes, as moças da ZBM arrumavam-se com esmero e saíam, quase todas ao mesmo tempo, em direção ao Cine Brasília, um imenso barracão na Avenida Central. Quando elas passavam, todos os candangos da Cidade Livre paravam para assistir ao desfile daquelas que, mais tarde, os receberiam nos barracos de madeira. "O cara via, escolhia e à noite ia procurá-la". Havia muita garota de 14, 15 anos, ele se lembra. "Naquele tempo não havia esse cuidado [com a exploração sexual de crianças e adolescentes] que tem hoje e que deve ter". Se dependesse da vontade dele, o Hotel Guarapari ainda estaria de péO vizinho da ZBM conta que conhece várias moças que trabalhavam nos prostíbulos, que se casaram com candangos, formaram família e hoje vivem muito bem na capital. "Conheço, claro que não vou falar quem é, tenho o maior respeito por elas. Essa coisa de coração, de afinidade, ninguém controla." Ele mesmo não se encantou por nenhuma das garotas do sexo. "Eu era tão comprometido com o meu sonho que só fui casar depois dos 40 anos." O sonho de Carlos Paulista era atravessar o Tratado de Tordesilhas e prosperar. Quatro anos depois de aqui chegar, já era dono de uma retífica de motores. Chegou a ter 120 empregados e 6,8 mil metros quadrados de lotes no Núcleo Bandeirante. Entre 1979 e 1980, perdeu tudo. "Quebrei por incompetência. Cresci até certo ponto, mas não tive competência para gerir o que eu tinha", ele diz, com espantosa honestidade. "Tem gente que diz que me roubaram, mas eu digo que, se o cara é competente, ele tem que saber enfrentar os ladrões." O paulista que queria ser bandeirante quis matar ou morrer. "Só não fiz uma besteira porque tenho a melhor mulher do mundo". Carlos Paulista é casado com Ivone, uma educadora e psicóloga de 62 anos, com quem teve dois filhos e um neto. Ela cuida do marido como quem cuida de uma criança. O irrequieto candango vive de inventar modos de ser feliz. Depois de lutar para que o Hotel Guarapari não fosse derrubado - batalha na qual foi derrotado - , agora empenha-se em construir um obelisco na Praça dos Estados, para simbolizar o encontro das nacionalidades. Três rodovias federais se cruzam na Candangolândia: a BR-020, a BR- 040 e a BR-060 - a que vem do Norte, a que vem do Sudeste e a que vem do Centro-Oeste. "É o centro histórico mais importante do Distrito Federal, mais que a Praça dos Três Poderes, porque é o encontro de todo o povo brasileiro que acreditou no sonho." Carlos Paulista já avisou à família: "Na hora em que eu morrer, tem de fazer um torradinho de mim e jogar minhas cinzas na praça, um pouco dela debaixo da bandeira de São Paulo." O bravo candango avisa: "Se não fizerem isso, vou dar trabalho que só vendo pra esse povo." E dá uma enorme gargalhada.

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