Cidades

João coragem

Ele fez a fundação de algumas das obras mais importantes da nova capital. Dona Zilda, sua mulher, criou os 14 filhos, 11 deles brasilienses, e ajudou a construir a casa onde o casal mora até hoje

postado em 19/12/2009 07:00
Mesmo diante de desafios que pareciam impossíveis de encarar, seu João, em momento algum, teve medo. %u201CA gente morre de qualquer jeito%u201D, resume o bravo pioneiroFundação é uma palavra forte e João Batista Pereira dos Santos faz jus a ela. Na construção civil, fundação é a base firme sobre a qual o edifício se sustenta. É ela que liga o prédio à terra, é a travessia da natureza à civilização. Um dos homens que fizeram a fundação de algumas das mais importantes obras de Brasília mora, há mais de 50 anos, numa casa da Quadra 12 de Sobradinho, ao lado das serras da Chapada de Contagem. Piaiuense, 85 anos, 1,60m,14 filhos, dos quais 13 estão vivos, o bravo candango escavou o chão vermelho de Brasília em busca de terra firme para suportar o peso de uma cidade.

A baixa estatura ajudou-o a cavar, com picareta e enxada, o solo da nova capital, mas só ela era insuficiente. Foi preciso muita coragem e um certo distanciamento do medo da morte. ;A gente morre de qualquer jeito;. Sozinho, seu João roeu a terra de onde aflora a Torre de Tevê, um das duas únicas obras arquitetônicas de Lucio Costa em Brasília. De short, botina e uma lâmpada acoplada à testa, seu João sulcava a terra, enchia o balde, dava um puxão na corda, o operário lá de cima retirava o barro e o lá debaixo seguia afundando o solo até encontrar condições e profundidade seguras para sustentar as 370 toneladas de ferro da Torre.

;Cavei 35 metros, fiz o bolo de barro, mandei lá pra cima, o engenheiro mandou a terra para o Rio de Janeiro e voltou dizendo que era preciso afundar mais. Cheguei a 41,60 metros. A Torre tem tudo isso de fundura;, diz seu João. Foi a empreitada mais trabalhosa, embora as outras não tenham sido nada fáceis. Seu João fez a fundação do 28 (como era conhecido o Congresso Nacional), da galeria que ele diz que existe entre o Congresso e o Palácio do Planalto, da Rodoviária, do Tribunal de Contas da União, das passagens subterrâneas do Eixão Sul. ;Cavei quase tudo o que existe do Hotel Nacional até bater no Hospital de Base;. Seu João era funcionário da Estaca Franca, empresa responsável por muitas das obras de fundação de Brasília.

Trabalho árduo
Antes de se transformar num bravo candango, seu João havia sido um bravo garimpeiro. Trouxe do garimpo a experiência de cavar túneis de dezenas de metros de extensão para a extração de minério. ;Tem vez que você entra e, quando pensa que não, uma jaracuçu está perto de você. Com uma mão, você oferece o candeeiro pra ela e com a outra você vai no escuro até pegar ela por trás. Aí você grita pelo sócio e ele vem com a marreta e mata, bota na caixona de pau e leva lá pra cima;. Seu João faz os gestos de quem, vagarosamente, encanta a cobra com a luz e ao mesmo tempo tenta dominá-la com a outra mão. Mais arguto e rápido que ela, ele venceu muitas dessas (e outras) pelejas de vida ou morte.

Depois da construção de Brasília, trabalhou mais 42 anos de carteira assinada (;me enganaram;). Foi funcionário da Novacap por 38 anos. À noite, nos fins de semana, feriados e férias, Seu João trabalhou por conta própria: fez mais de 300 fundações e lajes em Sobradinho, segundo suas contas. A mulher, dona Zilda, 75 anos, ajudou-o a construir a casa onde moram, o que só foi possível depois de 30 anos de trabalho. ;Peneirei areia, carreguei massa, carreguei tábua na cabeça pra fazer o escoramento da laje;, lembra-se dona Zilda, senhorinha agitada e sorridente que até hoje cuida da casa de cinco quartos e dez camas onde, nos finais de semana, se reúnem muitos dos 13 filhos, 36 netos e 24 bisnetos.

Família que começou há 59 anos, quando João Bonitinho se engraçou por uma garota que a mãe achava meio doidinha, Zilda. Vendo a menina maltratada, ele a pediu em casamento. Ela tinha 14 anos e ele, 24. Casaram-se no religioso e tiveram três filhos até que João decidiu vir para Brasília atrás da prometida prosperidade. O operário que cavava a terra para os palácios chegou aqui em 1957 e logo se arranjou na Vila Amaury, mais tarde engolida pelo Lago Paranoá. Todo mês, mandava um pouco do salário para a mulher, menos da metade do que ganhava. Até que um dia, Zilda tomou uma decisão.

Carta estratégica
Fazia mais de mês que João Bonitinho não mandava notícias para a mulher grávida e os dois filhos que haviam ficado em Monte Alegre. Em 11 de abril de 1960, nasceu Almir. Zilda ficou mais preocupada ainda, temia que algo tivesse acontecido ao marido. Os boatos que chegaram ao sertão do Nordeste eram de que ia haver muita briga em Brasília entre os que queriam a mudança da capital e os que queriam continuar no Rio de Janeiro. ;Diziam que a capital só mudaria se corresse sangue de mocotó;.

O silêncio prolongado do marido aumentou a apreensão de Zilda. Ela então mandou uma carta dizendo que estava muito doente, morre-não-morre. Mesmo assim, nenhum sinal de Bonitinho. ;Ele não vem me buscar mais não;. Então decidiu: ;Vou vender tudo e vou pra lá;. Foi o que fez.

Todos os dias as mulheres iam para o cruzeiro à entrada da cidade esperar a chegada dos paus-de-arara trazendo encomendas dos maridos. Num desses dias, uma delas reconheceu João Bonitinho de longe e correu para avisar Zilda que o marido estava chegando. Quando viu que a mulher já estava pronta para vir para Brasília com as três crianças, seu João reagiu: ;Minha velha, você é doida. Você enlouqueceu de vez. Lá em Brasília não é lugar de mulher;. Ela não recuou: ;Não quero nem saber. Você já está velho, eu sou jovem e bonita. Você não quer me levar por causa dos homens;. João estava enredado: ;Então, vamos. Mas você vai se arrepender;. Zilda não teve medo: ;Se eu me arrepender, não vou me queixar de ninguém, só de mim mesma;.

Casaram-se no civil e vieram. Dona Zilda não demorou a pagar a língua: ;Quando cheguei, me arrependi na hora. Era frio demais. Caía gelo. Quando a chuva vinha lá na serra, eu já estava dentro de casa. Juntava os três meninos e tremia em cima de uma cama;. O bebê estava com três meses, quando veio mais uma novidade: ;Peguei bucho do primeiro pioneiro de Brasília;. Depois do Jair, viriam outros nove, todos brasilienses. Ao todo, tiveram 14 filhos: Adauto, Zenilda, Almir, José, Nilta, Paulo, Neide, Luzineide, Antônio, Jair, Mariluce, Roberto, Luciano e Luzinete, que morreu ano passado.

Quando chegou a Brasília, em 1960, Zilda foi trabalhar de empregada doméstica. Nunca havia visto um fogão a gás nem uma panela de pressão. ;Um dia, a mulher mandou eu olhar a panela de pressão. Quando ela apitar, você desliga o fogo;. Quando começaram os apitos, Zilda não sabia o que fazer. Pegou o cabo do rodo e de longe com muito cuidado empurrou a panela para longe do fogo. Passou o restante da manhã, com os seus três filhos e os dois da patroa, olhando a panela de longe, temendo que algo ainda pudesse acontecer. Ela conta e ri. Zilda adora rir.

João e Zilda são dois bravos candangos que criaram 13 filhos na terra prometida. ;Nunca nenhuma polícia bateu na minha porta. Todos os filhos homens têm o segundo grau. Hoje, me acho maravilhosa;, diz Zilda ao lado do velho João, hoje cansado, mas ainda vaidoso. De chapéu, camisa de linho de manga comprida, calça de vinco e coragem que nunca acaba. ;Dei um duro danado, mas pra mim foi bom;, ele diz, com uma sombra de dúvida. O bravo candango trabalhou demais para salário (e aposentadoria) de menos.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação