Cidades

Com os olhos do coração

Ela nasceu cega, driblou as dificuldades inerentes à deficiência e, cada dia mais, sente estar sintonizada com o mundo que a cerca. Na verdade, sua determinação e o aprimoramento dos outros sentidos fazem de Júlia Nadler uma pessoa de sensibilidade avançada e muito talento

postado em 27/04/2010 08:41
O mundo diante dos olhos castanhos e entreabertos de Júlia de Salvo Cecílio Nadler, 14 anos, é totalmente escuro, com raros sinais de luz, desde o primeiro dia de vida. Quando ela abre as janelas da alma, apenas o breu aparece. Júlia não enxerga ; nasceu com uma lesão degenerativa congênita nas retinas(1) ;, mas vê com o coração. A imaginação fértil transforma tudo em cor-de-rosa, a cor preferida, a mais brilhante, segundo a menina. Na falta da visão, a adolescente usa o tato para conhecer rostos, mãos e cabelos de quem se aproxima. Ela tem sede de se expressar, de dividir o mundo que criou com os demais. Para isso, Júlia dedica-se a compor músicas. Já são mais de 10. A menina ainda canta. A voz é suave, delicada e afinada. Também escreve livros em braile. É artista do começo ao fim.

Ela nasceu cega, driblou as dificuldades inerentes à deficiência e, cada dia mais, sente estar sintonizada com o mundo que a cerca. Na verdade, sua determinação e o aprimoramento dos outros sentidos fazem de Júlia Nadler uma pessoa de sensibilidade avançada e muito talentoAs feições de criança delicada, com pálpebras pintadas de rosa-claro por ela mesma e os cabelos lisos, longos e adornados com presilhas de borboletas coloridas, escondem uma jovem independente. Para não precisar de ninguém no momento de fazer os arranjos de suas canções, Júlia aprendeu a tocar violão sozinha. A diretora e a professora de atividades especiais da Escola Classe 410 Sul se empenharam para que a menina seguisse em frente. A primeira empresta os CDs e a segunda transcreve para o braile as letras de músicas. Outra incentivadora, a mãe de Júlia, a enfermeira Eloíse Cristina Cecílio, 36 anos, contratou um professor de violão que vai até a casa delas, na Asa Sul. Hoje, Júlia toca com maestria.

O caminho da superação, porém, foi traçado devagar. A mãe de Júlia deu à luz aos 22 anos. Durante a gravidez, não havia problemas e Eloíse se preparou para receber nos braços uma criança saudável. Mas não foi assim. ;Não vou dizer que foi fácil no início. Era um problema sem explicação. Buscamos cura em todo lugar, viajamos muito. Mas quando vi que não tinha tratamento eu adaptei a realidade dela ao mais próximo da normalidade possível. Induzo a Júlia a fazer tudo sozinha. Ela escolhe as próprias roupas, dá um jeito de identificar até as cores. Com o tempo, a Júlia me mostrou que tudo é possível;, orgulha-se a mãe.

Desde pequena, Júlia aprendeu a ser forte. ;Trato minha filha como uma pessoa normal, porque é isso que ela é. E toda a família age assim. A gente sempre saiu com ela muito arrumada, bonita. As pessoas se aproximavam e a chamavam de ;coitadinha;. E eu brigava muito e falava: ;Ela não sente dor, não passa necessidade, não é coitada;. Minha filha nunca caiu ou se machucou por causa do problema na visão. Sabe se defender e se virar muito bem. Acima de tudo, é muito feliz. Ela é uma lição de vida todos os dias;, relatou Eloíse.

Namoro
Amor não falta na vida da menina. Júlia fez uma música para o namorado, Geovane Alziro, 17 anos, com quem está há um ano. O nome da canção apresenta uma Júlia corajosa: Casar com você. Na letra, ela conta um sonho que teve com o amado e o pede em casamento. A cerimônia seria muito romântica, em uma ;noite de milagres.; Geovane também não enxerga, mas acha a namorada linda. Os dois se conheceram na escola. ;Ele me elogia sempre. Fala tanta coisa. Diz que eu sou a luz do viver dele;, suspirou Júlia. O namorado faz duetos com ela e toca flauta. Ela compôs também uma música especial para seu ídolo, a cantora Paula Fernandes, a intérprete da música Jeito de mato, que recentemente fez parte da trilha sonora de uma novela. ;Ela (a cantora) é uma das melhores e sei que é bonita porque tem voz de anjo e toca o coração das pessoas. Quero ser como ela. Cantar a natureza, o amor. Admito que sou sensível mesmo;, entrega-se Júlia.

Bondade
As músicas compostas por Júlia falam de um mundo com formas próprias, no qual cada pessoa tem o rosto que ela imagina. Na imaginação, Júlia conhece os traços do rosto da mãe, da avó, das professoras e do namorado. ;Ele é lindo demais. Eu sei porque sinto quando pego no rosto dele. Eu sinto a bondade das pessoas, como elas são por dentro e decido se elas são mesmo bonitas;, explicou Júlia. A menina com sonho de ser artista precisava dividir o próprio mundo. Tentou dançar, mas o ritmo dela não casava com o dos coleguinhas. ;Ela tentou participar da quadrilha da festa junina, mas não conseguia dançar igual aos outros. Isso trouxe uma tristeza muito grande para a Júlia. Então, eu a incentivei a cantar, coisa que ela já gostava de fazer. Era uma outra forma de arte, bem próxima a ela;, relatou a diretora da EC 410 Sul, Emília Soares dos Santos.

A experiência deu certo e Júlia descobriu um prazer inigualável ao soltar as emoções em forma de canção: ;Quando eu canto, não penso em nada. Esqueço todas as tristezas;. Quando sobe ao palco, na escola ou em apresentações para as quais é convidada, Júlia fica nervosa. Para conseguir se concentrar, imagina que na plateia não há pessoas, mas sim bonecas, as suas adoradas Barbies. ;Eu tenho uma que se chama Paula, é minha melhor amiga. É morena, tem o cabelo grande. Linda. Mas eu não brincaria de bonecas se eu tivesse outras companhias. Não tenho muitos amigos perto de casa;, contou.

BarreirasJúlia toca violão e compõe. Convive com a limitação desde que se entende por gente, mas dá a volta por cima:
Júlia está na 4; série e não gosta muito de estudar do jeito convencional. Reprovou algumas vezes e enfrentou dificuldades. No primeiro colégio onde estudou, a menina não encontrou educação inclusiva, como há na escola atual. Mesmo em um centro de ensino adequado, conviver com os colegas sem deficiência, em uma idade na qual brincadeiras nem sempre delicadas são comuns, é um desafio diário para Júlia. ;Um menino pegou a minha mão e me mandou passar no meu rosto. Quando eu passei, ele disse: viu como você é feia? Tem até espinha. Eu não gostei;, revelou.

Mas a maioria dos amigos de sala ajuda. As colegas e as educadoras lhe descrevem como são as pessoas, objetos e lugares. ;Já falei para a Júlia que meninos quando implicam com meninas é porque estão apaixonados;, brincou Emília. ;Ela tem uma convivência como a de qualquer outra criança e quando precisa de ajuda todos estão prontos para dar. Trabalhamos muito essa questão da diferença;, explicou a diretora.

Júlia confia em si mesma. ;Não sei até onde sou capaz de ir. Mas tenho bons pensamentos e muita fé. Minha deficiência só me impede de enxergar com os olhos, mais nada. Não me proíbe de usar o coração para ver o mundo;, disse. ;O sentimento do cego é ainda mais bonito, a gente vê com a alma e só coisas boas. Minha avó me fala que quem enxerga vê muita coisa feia. Não faço questão de ver os homens poluindo rios na televisão, mas eu peço a Deus todo dia para eu poder ver o rosto da minha mãe, da minha avó, dos meus amigos, do meu namorado e o meu também.; Júlia não perde a capacidade de se alegrar, mesmo sem poder enxergar no espelho a beleza do próprio sorriso.

1 - De onde vêm as imagens
A retina é a membrana sensível à luz, localizada na superfície interna da parte posterior dos olhos. Ela é responsável pela sensação da formação das imagens e está relacionada a duas das quatro principais causas de cegueira. A área central da retina, chamada mácula, contém a maior densidade de nervos sensíveis à luz e, por isso, opera a melhor resolução visual.

"Não sei até onde sou capaz de ir. Mas tenho bons pensamentos e muita fé. Minha deficiência só me impede de enxergar com os olhos, mais nada. Não me proíbe de usar o coração para ver o mundo"
Júlia Nadler, 14 anos

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