Cidades

Lucio Costa tropicalista, quem diria

Exposição da vida e da obra do inventor de Brasília percorre o trajeto do arquiteto desde as primeiras obras até o projeto do Plano Piloto. E revela que ele não era apenas moderno, era telúrico, ousado, antropofágico, mesmo no regime militar

postado em 09/05/2010 11:09
Chegou o convidado mais importante da festa. A exposição Lucio Costa ; arquiteto traz a Brasília a vida e a obra do inventor da cidade desenhada como um pássaro com saudade do céu. A mostra, no Museu da República, tem dois momentos: o do térreo, que percorre o período anterior a Brasília, e o da cidade propriamente dita. Virá, então, uma surpresa desde já revelada (o que não roubará do visitante o espanto): depois de percorrer imagens, filmes e documentos do sonho esvanecido, ele será engolfado pela cidade sonhada ; ela, ali, ao inteiro alcance do olhar.

Quando se pensa em Brasília, o senso comum, no Brasil e fora dele, imediatamente se lembra de Oscar Niemeyer. O autor do projeto vencedor do concurso do Plano Piloto só sai de trás das cortinas nos meios acadêmicos, entre arquitetos, urbanistas e historiadores. ;Está na hora de Lucio Costa ocupar o palco. É por isso que optamos por fazer grandes ampliações dos documentos, maquetes de alguns de seus principais projetos e uma réplica, em escala 1/1, do Pavilhão do Brasil na Trienal de Milão de 1964;, diz a arquiteta Maria Elisa Costa, filha de Lucio, que está em Brasília desde a semana passada para acompanhar a montagem da exposição.

A réplica em tamanho natural é outra grande surpresa da mostra, mesmo para os que conhecem razoavelmente a obra do arquiteto. Lucio Costa foi o autor do projeto que representou o Brasil numa das mais importantes exposições de arquitetura e design do planeta. O contexto era dos piores: 1964, pós-golpe. O arquiteto, como era de se esperar, não fez proselitismo político pró-regime, também não fez panfleto de esquerda, mas não se omitiu. Inspirou-se em Caetano Veloso e Hélio Oiticica, foi brasileiro sem ser ufanista, e espalhou redes coloridas sob bandeirolas em quase todas as cores pátrias (azul, verde e branco). Foi tropicalista.

;Em meio a uma onda de conservadorismos ; que somente se iniciara em 1964 e que se desdobraria no total fechamento das perspectivas culturais em 1968 ; Lucio Costa apresenta um pavilhão despojado, um espaço de uma simplicidade inacreditável, com uma configuração quase imaterial para cumprir o tema proposto pela Trienal: o tempo livre;, escreveu o arquiteto Eduardo Rossetti em Riposatevi: a Tropicália de Lucio Costa na 13 ; Trienal de Milão.

Fazia apenas quatro anos que Brasília havia sido inaugurada. Era de se esperar que a representação do Brasil em Milão fosse um desdobramento da estética moderna/brasiliense. Lucio Costa prefere dar um salto sem, no entanto, soltar a ponta da corda de sua mais importante invenção. ;O pavilhão revela um país que também havia saído da rotina do subdesenvolvimento industrial e que havia consolidado sua atuação no âmbito cultural mundial, superando sua dependência cultural, exercitando uma antropofagia saudável, cosmopolita e urbana;, escreve Rossetti. O mesmo Brasil que construiu Brasília sabe se contrapor a ela num ;ritmo tranquilo, telúrico, popular e simples através do ato de se deitar numa rede;.

Relaxem
Catorze redes, como no projeto original, estarão armadas no pavilhão, convidando os visitantes, todos e qualquer um, a se embalarem no modo genuinamente brasileiro de descansar, dormir, amar, brincar, se refrescar. O letreiro graúdo, na fachada do pavilhão, era um convite tentador e inusual: RIPOSATEVI ; do verbo italiano riposarsi, relaxar, repousar, dormir, flexionado na segunda pessoa do plural imperativo: relaxem, descansem, repousem. A réplica também terá o verbo em italiano, mas o convite é puramente brasileiro: deitem-se. Ou toquem violão, porque haverá três. Quando da exposição, o próprio Lucio Costa foi à Rua da Carioca, no Rio de Janeiro, e os comprou ;dos mais baratos;.

No texto no qual detalhou o projeto do pavilhão, Lucio Costa explicou que o painéis externos teriam uma fotografia de Brasília ;como a sugerir que essa mesma gente que ;passa o tempo livre na rede, quando o tempo aperta constrói em três anos, no deserto, uma capital; (o itálico é do autor). A capital que ele havia inventado estava, portanto, na representação brasileira em Milão. Outra foto, do lado de dentro do pavilhão, mostra a inauguração da cidade. Três religiosas brincam de roda com estudantes na Praça dos Três Poderes. As fotos exibidas em Milão e agora em Brasília são do francês Marcel Gautherot.

No pavimento térreo do Museu da República, o visitante conhecerá Lucio Costa de antes de Brasília. A intenção, segundo a produtora Cláudia Pinheiro, é mostrar aos brasilienses

como o inventor foi se preparando, sem saber, ao longo da vida para, aos 54 anos, inventar uma cidade moderna e brasileira. ;Pode-se perceber que em todos os projetos dele alguma coisa já o preparava para Brasília;, diz Cláudia.

Filme doméstico
Dezenove maquetes das principais obras do arquiteto compõem a exposição. Entre elas, a do Ministério da Educação e Saúde, projeto inspirado em traço de Le Corbusier e feito junto com Carlos Leão, Affonso Eduardo Reidy, Ernani Vasconcellos, Jorge Machado Moreira e Oscar Niemeyer, o Museu dos Jesuítas, o Park Hotel de Nova Friburgo. Haverá documentários e entrevistas gravadas com o arquiteto nos quais ele comenta projetos, pensamentos e reflexões sobre arquitetura, arte, cidades, ciência, tecnologia, religião, humanidade. E um filmete doméstico, feito pelo próprio arquiteto, no qual aparece sua mulher, Leleta, e as filhas Maria Elisa e Helena, em um passeio familiar.

Terminada a visita ao pavimento térreo, o visitante subirá a rampa sinuosa de Niemeyer até o mezanino. E será conduzido, naturalmente, a um túnel dedicado a Brasília. Nas duas paredes laterais, imagens da construção de Brasília, de filmes sobre a nova capital ou nela inspirados, anúncios publicitários da época, nos quais a nova capital vendia de chuveiro a refrigerante.

Adiante, uma mesa de seis metros quadrados espera o visitante. Sobre ela, todos os muitos papéis, rabiscos e papeizinhos de onde Brasília surgiu. Ao lado, as cinco pranchetas originais do Projeto do Plano Piloto de Brasília. Do outro lado, uma parede com as primeiras páginas de jornais brasileiros e estrangeiros, mais daqueles do que desses, da edição que noticiou a inauguração de nova capital. Mais alguns passos e o visitante chegará à rampa. Lá estará Brasília.




Cabe à inteligência retomar o comando;

;O Brasil é um país precursor, acho que vai ser; dará seu recado no tempo certo;

;O Brasil não tem vocação
para a mediocridade;

;O ser humano, com o seu drama existencial ; gênio, vagabundo ou santo ; é a peça chave, o remate da evolução;

;Apenas o cerrado, o céu imenso
e uma ideia saída da minha cabeça;

;Brasília nunca será uma cidade
;velha;, e sim, depois de completada e com o correr dos anos, uma cidade antiga, o que é diferente, antiga mas permanentemente viva;

;É estranho o fato: esta sensação, ver aquilo que foi uma simples ideia na minha cabeça transformado nessa cidade enorme, densa, imensa, viva,
que é a Brasília de hoje. Os senhores
me deem um pouco de tempo,
porque estou emocionado;
(Seminário do Senado, Brasília, 1974)



Projetos

Anos 30
Casa Fábio Carneiro de Mendonça
Casa Fontes
Casa Schwartz
Clube Marimbas
Casas sem Dono
Monlevale
Ministério da Educação e Saúde
Museu das Missões
Cidade Universitária
Pavilhão do Brasil na Feira Mundial
de Nova York

Anos 40
Casa Hungria Machado
Casa Saavedra
Parque Guinle
Park Hotel

Anos 50
Cada do Brasil na Cidade Universitária
de Paris
Sede social do Jockey Club
Altar para o Congresso Eucarístico
Sede do Banco Aliança

Anos 60
Cobertura para a filha Maria Elisa
Pavilhão do Brasil na XIII Trienal
de Milão
Rampas de acesso ao Outeiro da Glória
Plano Piloto para a Baixada de Jacarepaguá

Anos 70
Monumento a Estácio de Sá
Proposta para Museu de Ciência
e Tecnologia
Nova capital da Nigéria
Novo polo urbano de São Luís

Anos 80
Casa para a filha Helena
Casa para Edgard Duviviier

Anos 90
Concepção editorial e gráfica de Lucio Costa ; Registro de uma vivência, autobiografia

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