Cidades

Uma viagem pra nunca esquecer

Os longos 70km que separam o Capão Seco de Brasília foram vencidos como sonho pelos alunos da única escola do lugar. Um homem que não sabe ler nem escrever - e ainda assim trouxe o saber para a região - acompanhou a garotada na aventura

postado em 29/05/2010 07:00
Na Torre de TV: frio na barriga, depois do elevadorEles conheciam tudo. De fotos, pela televisão, nos livros, nas pesquisas. E na imaginação fértil. Aliás, é a imaginação que lhes permite voar todo dia daquele lugar. Entrar em naves espaciais, viajar pelas nuvens e construir sonhos de todas as cores. Foi assim, desse jeitinho, que eles inventaram uma cidade tão distante de suas vidas. Mas nunca desistiram de um estar aqui de verdade. Dos 60, apenas 17 tinham vindo perto. E mesmo assim não conheciam bem. Apenas passaram.

Na manhã de ventinho frio de ontem, eles vieram. E provaram a si mesmos que sonho bom é quando se acorda e ele é real. Chegaram e viram, de olhos arregalados, a cidade que um dia construíram com suas maquetes de isopor. Venceram os 70 intransponíveis quilômetros que separam o lugar onde vivem do outro mundo. E deixaram a pacata e humilde Capão Seco, zona rural ligada ao Paranoá, em direção à terra de JK.

No ônibus, a caminho da capital: animação dos alunos e de SantilCom eles, dentro daquele ônibus, veio o homem simplesinho que acreditou e lutou, há mais de 40 anos, mesmo sem saber ler e escrever, para que a escola onde estudam hoje existisse. Enfrentou a ditadura, os coronéis de farda e ergueu o saber feito de tábua e muito sonho. Deu cidadania e dignidade a uma gente que não existia. O Correio contou a emocionante história dele na edição de Cidades, de 2 de maio. Valeu a pena. Santil Alves Ribeiro, aos 87 anos, virou menino de novo. A alma dele não envelhehce.

E, como menino peralta, o homem de 87 anos embarcou no ônibus. Vestia terno de risca de giz, camisa azul, sapatos pretos bem engraxados e chapéu marrom. A mesma roupa que usou no casamento de uma das netas. Estava impecável. Elegante como um lorde inglês. Seus companheiros de viagem foram os alunos do 1;, 2; e 3; anos da Escola Classe Capão Seco. Os mais velhos não tinham mais que 9 anos; os mais novos, 6. Uma aventura.

No museu, o homem de 87 anos posa ao lado de Lucio Costa, o arquitetoSessenta crianças. A diretora, a supervisora, a merendeira, as três professoras. Estão todos na mesma viagem. O ônibus partiu às 8h35, depois do café da manhã. Teve gente que nem dormiu direito. Santil foi um deles. ;Nossa Senhora, tava muito animado. Acordei com a cantiga do galo, antes das 6h;, ele diz. Graziela, 6, também. Pulou da cama. Rafaela, 8, sonhou com o passeio à terra do ;homem que fundou Brasília;. Emanuel, 8, e Gabriel e Luidy, ambos de 7 anos, netos de Santil, falaram sobre a viagem a semana inteira.

Havia um clima de magia. Até a diretora, Consuelo Sílvia Ferreira, 40 anos, emocionou-se: ;É gratificante ver a felicidade no olhar dessas crianças. A professora Sizela Carneiro, 36, viu a recompensa do trabalho que a escola desenvolveu por dois meses, em todas as turmas, em comemoração aos 50 anos da capital tão perto e tão distante. ;Eles agora verão de perto o que aprenderam;, ela dizia, antes da partida.

Na Catedral, os vitrais foram um show à parteA estrada surge. É longo o caminho. Há curvas e estiradas a perder de vista. A cada segundo, Brasília fica mais próxima. É tão perto, mas, ali no Capão Seco, parece tão longe. Quase um outro país. Aquelas crianças aprenderam a medir a distância em sonho. Até Santil, que já esteve em Brasília, mesmo que muito superficialmente, se encanta: ;Se me soltarem lá, não sei voltar mais não, sô!”.

Imensidão de céu
O ônibus ; cedido gentilmente pela Viação Anapolina ; entra no DF. Capão Seco fica para trás. E segue a viagem. Passa pelo Jardim Botânico. E se aproxima da Ponte JK. Um menino grita: ;Olha lá, é a ponte do Juscelino!”. E todos esticam a cabeça pelo vidro das janelas lacradas para espiar melhor.

Santil, que viajava ao lado do peralta Lucas Carneiro, de 7 anos, troca impressão com o menino. O ônibus alcança a Esplanada dos Ministérios. Os alunos viram os palácios nas fotografias dos livros. Extasiaram-se. Santil, que há tempos não pisava aqui, arregala os olhos: ;Uai, parece que ficou mais bonito, moço...;.

No Museu da República, as crianças e o velho Santil se extasiam com a história da construção de BrasíliaLucas conta que vai dizer pro pai, frentista de um posto de gasolina na zona rural do Café sem Troco, e pra mãe, uma babá, que viu ;o lugar onde o presidente do Brasil fica;. Santil diz que ele também, um dia, pode ser presidente. Ele dá pinote no banco do ônibus. Os ponteiros do relógio marcam 9h45. Eles avistam a Torre de Televisão. Os hotéis da redondeza, pelo tamanho, os impressionam. Eles nunca tinham visto nada tão alto. Acompanhados pelas professoras e de crachá no peito (nunca se sentiram tão importantes), caminham em direção ao elevador da torre.

A maioria deles nunca andou de elevador. O coração bate mais forte. Entram em grupos naquela coisa que os levará para bem alto. E gritam, de curiosidade. Lá em cima, vendo a imensidão e o céu azul de Brasília, Santil mareja os olhos: ;Quem pensava, há 50 anos, que ia existir um movimento desse tanto?;. E se comove: ;Eu não penso mais em mim, com essa idade toda. Só penso em Deus;.

As crianças apontam a Esplanada, de onde tinham acabado de passar. Veem o Estádio Mané Garrincha. As asas Sul e Norte. O Eixo Monumental com toda a sua elegância e simetria. E percebem como o Capão Seco ficou para trás. O vento lá em cima é mais frio. Assanha os cabelos lisos. Uma menininha diz que está arrepiada. Outra morre de medo de tanta altura. Um menino diz que queria ser Super-Homem pra sair dali voando. Toda fantasia é permitida. Todos os sonhos são bem-vindos.

Sábio de nascença

Como turistas nunca antes na cidade, eles partem para o Museu Nacional da República. Às 10h34, visitam a exposição Lucio Costa, arquiteto. Um dos meninos pergunta: ;É o homem que fez Brasília, né?;. E se deslumbram com a obra e a vida do arquiteto do traço reto. Ouvem atentamente o que a moça do museu lhes explica. Santil ouve e diz, com simplicidade de menino que confessa traquinagem: ;Nunca tinha entrado num museu;. E se espanta com tanta coisa: ;Tem novidade também, não é só coisa do passado, não;.

Às 11h55, é hora de uma paradinha na Catedral. Assim que entram, os sinos badalam. Os olhos esbugalhados para os vitrais denunciam a emoção. Uma menina faz o sinal da cruz. As professoras contam a história da Catedral. Santil nunca havia entrado ali. É preciso seguir. A viagem ainda não acabou.

O ônibus parte para mais uma volta pela Esplanada dos Ministérios. Rodeia o Congresso Nacional e a Praça dos Três Poderes. Parece não lhes interessar muito o que aquela gente engravatada diz ou faz dentro da Câmara ou do Senado. Deliciam-se mesmo com os pombos que invadem a praça. É hora de prosseguir. A Ermida Dom Bosco e o Lago Paranoá os esperam.

Meio-dia e quarenta. Assim como Dom Bosco ; o padre italiano que teve a visão de que da nova cidade no Planalto Central jorraria leite e mel ;, as crianças do Capão Seco sonharam com uma cidade que só conheciam por fotos. Ali, comeram cachorro-quente e tomaram refrigerante, debaixo de uma sombra bem gostosa. Cansaram-se de andar e de tanta emoção. E voltaram. Às 14h30, chegaram ao Capão Seco, cercado de fazendas, vacas e cavalos, e à vida que lhes pertence.

Nada mais será como antes, depois dessa viagem. Aquelas crianças perceberam que o longe pode ser bem mais perto do que imaginavam. E que sonho bom, de verdade, é aquele que se pode sonhar de olhos bem abertos. Santil, o lorde que não sabe ler nem escrever, e ainda assim nasceu sábio, é o grande responsável por toda aquela gente ter podido um dia acreditar em si mesma.

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