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Noites de Yone

Aos 90 anos, ela conta suas aventuras e desventuras nas boates de garotas de programa nos primeiros anos de Brasília. Diz que ganhou tanto dinheiro que não tinha tempo para contar as cédulas. Mas perdeu tudo

postado em 19/06/2010 07:00

Ismael planeja ir ao Nordeste e também a Bariloche. Segundo ele, viajar é uma boa forma de aproveitar a vidaNão foi somente com sonho e valentia que se construiu Brasília. Foi com muito sexo e muita cachaça. A história da prostituição nos primeiros anos da nova capital é um dos mais bem-guardados segredos do período. Quem está vivo mantém o silêncio para não se comprometer nem comprometer os demais. Mas há quem fale. No ano em que Brasília foi inaugurada, 1960, a mineira Yone Waranhara Rodrigues era gerente de uma boate nos arredores de Luziânia, um tempo em que ela ganhava tanto dinheiro que jogava debaixo da cama para só dias depois, dois ou três ou quatro, ter tempo para juntar o dinheiro esparramado e fazer a conta do lucro do período trabalhado. Mas nunca acumulou patrimônio, porque gastava muito com roupas, sapatos e perfumes e porque ajudou a irmã, pobre e mãe de dez filhos, com quem perdeu o contato.

No dia em que conversou com o Correio, Yone estava completando 90 anos, quinta-feira passada, 17 de junho. Estava sozinha na casa ;de joão-de-barro;, como ela diz, no Jardim Céu Azul, para onde se mudou 15 dias atrás. A moradia de quatro cômodos e um pequeno quintal é pequena para as muitas lembranças da mulher e os muitos objetos que ela guarda desde que chegou à nova capital para gerenciar uma boate de encontros amorosos.

Há muito tempo, Yone perdeu contato com os parentes. O destino dos seis filhos é uma história dentro da história. O segundo companheiro, ex-garçom do prostíbulo, com quem viveu durante 35 anos, morreu há dois. A solidão facilita o relato da ex-gerente de boate. Mas ainda assim ela parece revelar muito pouco de tudo o que viveu e testemunhou nos intensos anos inaugurais da nova capital, um território de forasteiros, onde tudo era possível, ou quase tudo.

Aos 90 anos, ela conta suas aventuras e desventuras nas boates de garotas de programa nos primeiros anos de Brasília. Diz que ganhou tanto dinheiro que não tinha tempo para contar as cédulas. Mas perdeu tudoAntes de aterrissar em Brasília, Yone já havia experimentado uma vida febril e, não poucas vezes, penosa. Nascida em Belo Horizonte em 1920, quando a cidade ainda não tinha completado 30 anos, Yone cresceu na fazenda Curral das Éguas que ela diz ser onde hoje é o centro da cidade. Conta que é filha de militar e descendente de espanhol. Relata uma infância confortável num grande casarão.

Aos 9 anos, teve o primeiro namoradinho. Um italiano de 12 anos, Guido (Yone pronuncia Güido, com o trema recém-abolido pela reforma ortográfica). Quando estava com 14 anos e o namorado com 17, o casal fugiu para o Rio de Janeiro, depois de enfrentar a implicância da mãe de Yone, uma mulher de temperamento forte e impetuoso. Aos 19, engravidou de quádruplos, todos do sexo masculino. Um ano depois, de gêmeos, também meninos. Filha de uma família com ocorrências de gravidez múltipla, Yone teve de cuidar de seis bebês ao mesmo tempo. ;Eu não sabia como mexer com aquela criançada, não sabia trocar fralda nem dar de mamar. Dava de mamar duas vezes para o mesmo menino achando que estava dando para o outro. Dava banho de novo num que já tinha dado banho. Nossa, foi uma confusão.;

Aos 90 anos, ela conta suas aventuras e desventuras nas boates de garotas de programa nos primeiros anos de Brasília. Diz que ganhou tanto dinheiro que não tinha tempo para contar as cédulas. Mas perdeu tudoNo começo dos anos 50, quando as crianças já estavam com idades entre 9 e 10 anos, Yone não se lembra de datas exatas, o avião em que Guido, o pai e o irmão estavam desapareceu a caminho da Itália. Passado um ano sem confirmação da morte do companheiro, Yone decidiu dar os seis filhos para um casal de compadres. ;Perdi a cabeça. Pensei muito, chorei muito. Não sabia como iria criar esses meninos. Dei os seis de papel passado para os nossos amigos. Eles não tinham filhos, ela não podia ter filhos e eles quiseram os seis.; Desde então, Yone nunca mais teve notícias dos seis. Algum tempo depois, antes de vir para Brasília, tentou visitá-los no Arpoador, Rio de Janeiro, onde a família morava, mas não conseguiu encontrá-los em casa.

Sem o companheiro e sem os filhos, Yone foi parar em Assunção, Paraguai, e conseguiu um emprego numa boate de programa. O que a atraía era o glamour do lugar, as mulheres bonitas, ;as madames, os cavalheiros;. Como a mãe, Yone gostava de se vestir bem, de perfume importado, de unhas pintadas, de meia e salto alto. Depois de alguns anos, voltou para o Rio de Janeiro, e foi trabalhar num bar/boate no Largo da Carioca, que, segundo ela, pertencia às irmãs Linda e Dircinha Batista. Foi nesse lugar que conheceu Irene Souza, capixaba dona do bordel onde Yone trabalhou durante os anos 1960 e o começo de 1970, em Brasília.

Aos 90 anos, ela conta suas aventuras e desventuras nas boates de garotas de programa nos primeiros anos de Brasília. Diz que ganhou tanto dinheiro que não tinha tempo para contar as cédulas. Mas perdeu tudoSua função era controlar os programas das mulheres, ela conta. ;Tinha delas que fazia 20 programas por dia, outras faziam 15, outras, 30. Cada uma tinha o seu nome anotado numa página do caderno, com o número do quarto e o horário de entrada e saída dos quartos;. Yone diz que aos fins de semana o movimento era intenso. ;Ministros, gente importante e muitos candangos;. Ela diz que o presidente Juscelino Kubitschek esteve no bordel. E afirma que algumas das mulheres conseguiram progredir na vida. ;Tem uma que é doutora, mas não posso falar o nome dela. Outra se casou com um médico e foi morar nos Estados Unidos. Tem uma que é fazendeira, exporta até sêmen de cavalo.;

Irene, a cafetina, tinha critérios para contratação das mulheres. ;Ela não aceitava preta. Aceitava mulher branca, morena, mas preta tingida, não. E também não aceitava mulher sem mala. Primeiro ela olhava no pé da mulher, se estivesse bem calçada, tinha quarto. Tinha mulher italiana, japonesa, boliviana, paraguaia, tinha mulher desse Goiás todinho, tinha até mulher dos Estados Unidos.;

Aos 90 anos, ela conta suas aventuras e desventuras nas boates de garotas de programa nos primeiros anos de Brasília. Diz que ganhou tanto dinheiro que não tinha tempo para contar as cédulas. Mas perdeu tudoDepois do período áureo da prostituição em Brasília e nos arredores, a zona boêmia entrou em decadência. A boate onde Yone trabalhava, Veneza, foi arrendada e aos poucos todas foram sendo fechadas. Apaixonada por um gigolô que passou a desprezá-la, Irene ficou alcoólatra e morreu de cirrose, em 1968. Yone nunca bebeu nem fumou. ;Eu tomava guaraná e fazia de conta que era uísque. ;Paga uma dose aí pra Yone, ela gosta de uísque com água tônica;. Minha barriga não cabia tanto guaraná.;

Daquele tempo, guarda louças finas da cafetina ; há peças pintadas com o nome da proprietária, recurso usado nas famílias ricas daqueles tempos. Continua a cultivar o gosto pelos cosméticos, pelos perfumes, hoje da Avon, que compra com a aposentadoria de salário mínimo. Divide a solidão com um papagaio, três passarinhos, muitas plantas e Lili e Futrica, duas vira-latas. Reclama que foi retirada da casa onde viveu durante 50 anos, mas que não tem mais forças para resistir. ;Nunca fui de levar desaforo pra casa. Mas já sou velha e sozinha;. Apesar das desventuras, Yone mantém uma entonação de alegria na voz. ;Tenho estirpe;.


Agradecimento
A localização de Yone Waranhara Rodrigues foi possível graças à colaboração da equipe responsável pelo projeto Mulheres pioneiras na construção de Brasília, que vai homenagear 50 candangas em produções de vídeo, em livro e em exposição fotográfica. O projeto tem apoio da Petrobras.
Aos 90 anos, ela conta suas aventuras e desventuras nas boates de garotas de programa nos primeiros anos de Brasília. Diz que ganhou tanto dinheiro que não tinha tempo para contar as cédulas. Mas perdeu tudo

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