Cidades

Hip Hop é a resistência criativa dos negros no Distrito Federal

postado em 25/11/2010 08:18
O hip-hop está para o Distrito Federal como o rock esteve para o Plano Piloto. A cidade disputa com São Paulo a condição de mais importante produtora de talentos do movimento cultural que expressa a força criativa da juventude negra da periferia. No início dos anos 1980, enquanto a Legião Urbana estourava no país inteiro, em Ceilândia, que então era considerada a maior favela do país, surgiam os primeiros grupos de break dance. ;Naquela época ninguém tinha ideia do que era grafite, o rap cantado no Brasil era o americano. Em Ceilândia surgiu o primeiro grupo de rap brasiliense e o terceiro do Brasil, o Magrellos;, conta o DJ Raffa, um dos precursores do movimento hip-hop na cidade.

Passadas três décadas, o rock perdeu o vigor e a expressão cultural negra dos quatro elementos (break, grafite, rap e DJ) renova suas batidas e oferece ao Brasil uma musicalidade própria, engajada na experiência de negritude e periferia. Dona da Griô Produções, Jaqueline Fernandes convive intensamente com o hip-hop. Ela diz que o rap brasiliense se alimenta da diversidade cultural da capital do país. ;O MC Rapadura, por exemplo, é do Ceará, filho de repentista. Ele faz um rap muito diferente de tudo o que é feito no Brasil, inclusive em São Paulo. Ele mistura repente com embolada e rap e o resultado é um jeito de cantar que é só dele.; Se antes, Ceilândia concentrava a produção do hip-hop do Distrito Federal, os manos e as manas de Planaltina entraram na roda. A cidade centenária já abriga pelo menos 20 grupos de rap. ;Lá mora o DJ Bolatribo, considerado um dos melhores produtores musicais na cena rap nacional. Suas produções são inspiradas no estilo feito em Los Angeles com pitadas de dirty suth. O resultado é som pra bombar em qualquer pista de dança.;

Aos poucos, as mulheres estão subindo ao palco. As meninas do BSB-Girls vêm representando o break de Brasília em ;batalhas; pelo país inteiro, e até na Europa. Batalha é como o hip-hop denomina os campeonatos de break. Mais consagrado grupo de rap de garotas, o Atitude Feminina já pôs na bolsa três prêmios Hutúz, o mais importante do hip-hop nacional. No ano passado, elas ganharam o prêmio de revelação da década.

Há quatro anos, que o Hip-Hop do Cerrado reúne, na Torre de Tevê, 15 mil jovens em média ;e sem nenhuma ocorrência policial;, diz o DJ Raffa. ;A gente vai ao batalhão [de polícia] pedir ao alvará e eles dão na hora, sem problema.; Brasília é também a capital dos quatro elementos.

Minha mãe é artesã na Feira da Torre, fui criada lá. Ela é mãe crecheira. Meu pai é funcionário público. Meus pais se separaram quando eu tinha 8 anos. Com a separação, nós saímos do Núcleo Bandeirante e fomos morar no Entorno, no Posto 7, antigo prostíbulo de Brasília. Naquele tempo, ela já tinha as duas filhas legítimas e 11 crianças que ela foi pegando na rua. Como a gente trabalhava na feira, sempre aparecia uma mãe pedindo: ;Fica uma semana com essa criança pra mim; e muitas nunca mais voltaram para buscar os filhos. Até agora ela já contabilizou 103 crianças que passaram pela nossa casa. Não é uma creche, é a nossa casa, que a gente chama Recanto da Paz.

Como passava muito caminhoneiro pelo Posto 7 e lá era ponto de tráfico de drogas, minha mãe sempre dizia: ;Do portão pra dentro é nosso lar. A gente vai tentar nos desmembrar de tudo o que acontece ao redor;. A maioria das minhas colegas ou iam para o tráfico ou para a prostituição. Mas minha mãe sempre dizia: ;Vocês vão estudar, vocês não vão se corromper;. Mas é difícil você não se envolver com aquela situação. Foi nessa época que conheci o rap.

;Você precisa se empoderar;
Minha mãe é kardecista e sempre ensinou pra gente: ;O que você faz para o próximo volta pra você;. Então, a gente aprendeu a ajudar as pessoas, mas ainda era pouco. Um dia, fui fazer uma feira de artesanato na UnB [Universidade de Brasília] e conheci um rapper chamado Dino Black. Na época, eu ouvia axé, Olodum, Margareth Menezes. Ele me falou de um cantor de Brasília chamado X, do Câmbio Negro. Aquela música mexeu muito comigo porque a gente sempre foi tratado como uma sub-raça, pobre, mulher, negra. Minha mãe sem marido morando no Posto 7, ela queria o quê? Naquele local com um monte de filhos? Ou ela faz tráfico de crianças ou é prostituta também ou ela cuida dos filhos das prostitutas. Era o que se pensava. E a gente cuidava mesmo dos filhos das prostitutas durante o dia pra que elas pudessem dormir e trabalhar.

Aí ouvi uma música do Câmbio Negro que ele falava assim: ;Que sub-raça é a p.q.p.;. Pensei: ;Meu Deus, posso xingar? Posso falar o que eu quiser?; Aquilo me motivou. Era 1992. Eu já escrevia algumas coisas, mas nunca tinha transformado em rap, sempre tinha transformado em axé. Comecei a ouvir as batidas e a procurar as pessoas do rap. E aqui em Brasília não tinha nenhuma mulher no rap. Havia duas, mas faziam back vocal. Comecei a enfrentar muito preconceito de gênero, por ser mulher e estar entrando num universo tão masculino.

Minha mãe falou assim: ;Olha, você não vai poder brigar com todos esses homens ao mesmo tempo. Você precisa se empoderar primeiro. Termina sua escola e vai fazer uma faculdade;. Ela sempre insistiu nisso: ;Você tem que estudar, você tem que ser alguém, você tem que mostrar que a mulher pode, que a mulher é poderosa.;

Na família, nós sempre fomos negros, nunca tive dúvida da minha negritude. A gente aprendeu com minha mãe a ouvir samba e músicas que tratavam as questões raciais porque era nossa identidade. Eu nem sabia o que era ideologia, identidade, mas já tinha uma construída. Ela trabalhou isso muito bem com a gente. Como na infância a gente não tinha televisão, não fomos massificados pelo branqueamento da Xuxa. Quando fui ver televisão, já tinha 14 anos.

Com a história do empoderamento, virei professora universitária, fiz mestrado e agora estou tentando um doutorado. Vou trabalhar de turbante, de roupas africanas, de roupas que eu mesma pinto e algumas pessoas me perguntam: ;Você nem é tão preta, por que é que usa esse cabelo?; E eu respondo: ;A minha melanina é parecida com a sua, mas a minha trajetória é negra e eu não posso negar meus ancestrais.; Aí conto um pouquinho da história de quando os negros vieram para o Brasil. Quando foram trazidos de nossa terra mãe, eles davam sete voltas na árvore do esquecimento para deixar tudo lá, só que eles não deixaram, eles trouxeram. Eles estão nos guetos, construíram as favelas, eles fizeram a música que a gente dança. Quando as mulheres brancas queimaram sutiãs, as negras já trabalhavam na casa delas. É todo um processo histórico que não tem como negar. Sei quem sou e onde estou.

Fiz faculdade privada, com bolsa, em Valparaíso. Mas enfrentei uma dificuldade: eu queria falar do rap como instrumento pedagógico e não tinha orientador. Ninguém queria me orientar, porque ninguém entendia disso. E aí enfrentei a banca sozinha. Não posso deixar que outras pessoas passem por isso. Fiz pós-graduação em docência de ensino superior e me especializei em metodologia científica pra poder ajudar quem vai fazer trabalho de conclusão de curso. Hoje, sou professora da Universidade Estadual de Goiás e professora da Lei 10.639/03, de história e cultura afro nas escolas em Luziânia. E sou professora do Unicesp, no Guará, da disciplina diversidade, inclusão e metodologia científica e ainda faço consultoria para o MEC em gênero e diversidade sexual. E se nos fins de semana tem algum show, estou lá.

;Professora, você é macumbeira?;
A família do meu pai e de minha mãe é católica. Até os meus 10/11 anos, fui batizada, fiz primeira comunhão. Depois fui procurar meu próprio caminho. Sou de religião de matriz afro. Sou filha de Xangô com Oxum. Na faculdade, os alunos têm muita ansiedade quando me veem com turbante branco numa sexta-feira: ;Professora, você é macumbeira?; ;Sou. Você sabe o que significa macumba? Quando você pegar o dicionário, vai ver que está escrito: religião de matriz afro-brasileira. E a ela foram incorporadas todas as crendices e dogmas do Brasil. Mas lá não está escrito que você mata galinha, que acende vela. Você precisa conhecer as coisas e saber que eles tratam com a natureza e os animais e com o ser;. E aí você vai conversando.

Até hoje moro no antigo Posto 7. Tenho um companheiro, Negro Dé, cantor de rap. A gente divide essa história da música e da vida. Temos uma ONG que trabalha com questões raciais, de gênero e da cultura hip-hop. Se eu sair de Valparaíso, acho que vou perder um pouco a minha identidade. Quando chego em casa por volta de onze e meia da noite, ainda tem um grupo de jovens se acabando com o crack. E aí? Vou tapar meus olhos? Vou morar em outro lugar? Tem um rapper brasileiro que fala: ;Você pode sair da favela, mas a favela não sai de você;. A periferia não vai sair de mim, as questões pelas quais que eu luto não vão sair. Por que eu vou sair?

PARA LER

O negro no Brasil de hoje ; Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes, Global, 2006. Um antropólogo e um educador se juntaram para explicar, em linguagem acessível, o surgimento da civilização brasileira e a decisiva contribuição das nações africanas para a formação do país. Adotado em cursos de graduação, o livro é uma excelente iniciação ao tema.

MANOS E MANAS (DE BRASÍLIA)

GOG
Celsão
Nino
Leandronick
DF Zulu
Jamaika
Rei
DEF MCs
Voz sem Medo
Black Spin
BSB-Girls
Câmbio Negro
DJ Raffa
TDZ
Código Penal
Cirurgia Moral
Negro Dé
Atitude Feminina
Falso Sistema
Magrellos
Satão
Borracha
Souto
Supla
Liberdade Condicional
Flora Matos
Vadios Loucos,
Minas do Gueto
Tribo da Periferia
Provérbio X
Baseado nas Ruas
Dino Black
Japão
Thales
Rapadura
DJ Nelson Ramos
Marquinhos Smurphies
Hércules
Tropa de Elite
Comunicação Racial

Fonte: Texto de Jaqueline Fernandes, da Grô Produções

LEIA AMANHÃ
O embaixador de Cabo Verde, Daniel Pereira, ficou perplexo quando percebeu que no Brasil ainda existe preconceito racial. Em seu país, de onde vieram muitos escravos, não há racismo

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