Cidades

Reforma de fachadas nas asas Sul e Norte desfigura a cara do Plano Piloto

Com o intuito de modernizar os prédios das asas Sul e Norte, síndicos e moradores promovem a descaracterização da arquitetura e do projeto idealizados por Oscar Niemeyer e Lucio Costa para Brasília

Helena Mader
postado em 17/04/2011 06:00

Sem padronização, cada prédio é reformado de acordo com o gosto dos moradores: contraste com a simplicidade do planejamento das superquadrasÉ difícil imaginar edifícios projetados por Oscar Niemeyer, como a Catedral Metropolitana ou o Palácio do Planalto, cobertos por listras de pastilhas coloridas ou vidros fumê. Mas enquanto os grandes monumentos ainda preservam suas características e materiais originais, alguns prédios residenciais desenhados pelo arquiteto sofrem transformações diárias. Sob o pretexto de reformar e modernizar as fachadas do Plano Piloto, moradores e síndicos das asas Sul e Norte estão, aos poucos, alterando a paisagem da área tombada. Azulejos de Athos Bulcão dão lugar a peças de mármore e as frentes dos prédios antes discretas ; tão típicas de Brasília ; ,recebem revestimentos em formatos variados e cores gritantes. Sem nenhum tipo de controle, algumas quadras concebidas para terem blocos similares viraram um grande mostruário de empresas de arquitetura especializadas nesse tipo de reforma.

O problema não se restringe aos edifícios residenciais projetados por Niemeyer. A onda da ;modernização; dos prédios da capital federal atinge superquadras tradicionais e também construções com menos de duas décadas. As alterações das fachadas vão desde a troca de esquadrias e da substituição de revestimentos até a retirada de importantes elementos arquitetônicos, como as prateleiras de luz, e de ventilação típicas de alguns edifícios do Plano Piloto.

Com todos os prédios projetados por Oscar Niemeyer, a SQS 107 foi construída pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transporte de Cargas (Iapetc) e concluída em março de 1960, antes mesmo da inauguração de Brasília. A superquadra foi concebida para ter grupos de edifícios com a mesma tipologia: alguns com fachada em vidro, outros com janelas de concreto e prateleiras de luz. Em todos os casos, as laterais deveriam ser uniformes, cobertas por pastilhas pequenas, discretas e de cores claras.

Nos últimos anos, os prédios passaram por reformas e ganharam cara nova. Com isso, as fachadas, antes similares, ficaram completamente diferentes umas das outras. No desejo de ganhar identidade, cada síndico escolheu uma cor e um formato para decorar a lateral das construções. Assim, a escada de incêndio do Bloco B ganhou três enormes listras verticais de pastilhas verdes, aplicadas sobre um fundo de tom um pouco mais claro. Já as laterais do Bloco D, vizinho, ficaram decoradas por finas listras em marrom. Na parte da frente, os vidros claros e com esquadrias brancas, tão característicos do projeto de Oscar Niemeyer, deram lugar a vidros escuros ; o que deixou a fachada praticamente irreconhecível.

Mas a superquadra onde o efeito das reformas sem controle aparece com mais força é a SQS 106. Os 11 edifícios também foram projetados por Oscar Niemeyer e construídos pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários (Iapc). Quase todas as fachadas da quadra já passaram por revitalização e, durante o processo, os prédios perderam completamente as características originais. A paisagem que deveria ser homogênea é hoje uma amostra variada de decorações. Os blocos D e I, por exemplo, estão lado a lado. O primeiro está em fase final de reforma e as laterais receberam listras verticais vermelhas. A construção vizinha ostenta grandes listras horizontais em cinza, todas de comprimentos diferentes.

Afã de modernização
A descaracterização das fachadas do Plano Piloto e o afã de modernização de alguns síndicos e moradores são alvo de duras críticas de arquitetos e de entidades de preservação do patrimônio de Brasília. Mas a maioria deles é unânime em afirmar que são poucos os mecanismos de controle para evitar a farra das fachadas nas asas Sul e Norte.

As normas do tombamento de Brasília não são suficientes para impedir a descaracterização dos edifícios residenciais do Plano Piloto. A Portaria n; 314/92 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que inscreveu Brasília na lista de cidades e bens protegidos pela entidade, declara como tombado o conjunto urbanístico da cidade. Ou seja: o que deve ser preservado é o projeto de Lucio Costa para a cidade, seu desenho e suas características originais. Como o tombamento não é arquitetônico, não há normas legais para proibir os síndicos de decorarem as fachadas dos prédios como quiserem.

Já as características do conjunto urbanístico não podem ser alteradas. As superquadras devem ter uma única entrada e edifícios de, no máximo, seis andares, todos com pilotis livres e dimensões fixas. Assim, é possível demolir um prédio do Plano Piloto e construir outro no local, com características completamente distintas, desde que o volume permaneça o mesmo e que o gabarito e a norma da livre circulação nos pilotis sejam respeitados ; como previsto no projeto de Lucio Costa, vencedor do concurso que escolheu o traçado do Plano Piloto de Brasília.

Bom senso
Sem instrumentos legais para impedir as reformas que descaracterizam os edifícios, o superintendente do Iphan no Distrito Federal, Alfredo Gastal, quer apelar para o bom senso dos arquitetos e engenheiros que atuam em empresas especializadas na revitalização de fachadas. Ele critica o uso indiscriminado de pastilhas coloridas e a adoção de formas geométricas nas laterais. ;Na maioria das quadras, os prédios formavam um conjunto. Foram pensados propositalmente para serem similares e para representarem uma unidade na paisagem, não para se destacarem uns dos outros;, explica Gastal.

Ele é enfático ao criticar os proprietários de prédios que gastam grandes quantias de dinheiro para reformar as fachadas sem preservá-las. ;Fico assustado com o que vejo por aí. Há edifícios que usam umas pastilhas de cores horrorosas. Tem alguns em que a pastilha marrom claro parece um cocô de vaca, é um espanto;, dispara o representante do Iphan. ;Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso fica extremamente incomodada ao ver essas fachadas. Essa moda ;nouveau riche; é de um mau gosto gritante;, finaliza.

O Iphan tenta, ao menos, preservar as fachadas dos prédios da unidade de vizinhança que reúne as quadras SQS 107, 307, 108 e 308. Esse conjunto de superquadras foi tombado isoladamente pelo GDF em 2009. Com base no Decreto n; 30.303/09, que garantiu a preservação, o instituto já embargou duas obras de reforma de fachadas na SQS 307, que estão atualmente paralisadas. A decisão revoltou os moradores, que buscam saídas jurídicas para tentar garantir o direito de decorar como quiserem os seus prédios.

No Bloco K da SQS 307, a revitalização da fachada custará entre R$ 800 mil e R$ 1 milhão. As pastilhas ; em marrom claro ; já estão compradas e as caixas com o material permanecem espalhadas nos pilotis. A obra está parcialmente embargada: o Iphan exige que as laterais do prédio tenham uma única cor, em vez de ostentarem os desenhos geométricos. Uma das empenas já está pronta, com estampas bicolores, mas o instituto do patrimônio quer a substituição das pastilhas.

A síndica do Bloco K, Nilda Pereira Brito, reclama de outra determinação do Iphan. O projeto de reforma prevê o fechamento dos nichos de concreto que existem sobre as janelas do prédio ; o que também foi vetado pelo órgão. ;Esses buracos só servem como abrigos para pombos, não têm nenhuma utilidade. Nossa revolta é que aprovamos o projeto de reforma na Administração Regional de Brasília, que não fez nenhuma exigência. Agora nos surpreendemos com esse embargo, que já dura dois meses e nos traz muitos prejuízos;, reclama. A obra do Bloco I também está parada pelos mesmos motivos.

No Bloco H da SQS 307, a mudança da fachada foi feita em 2003 e não enfrentou nenhum óbstáculo legal. A lateral do edifício ganhou desenhos em pastilhas verdes e brancas, com uma faixa de mármore preto ; tudo devidamente aprovado em assembleia pelos moradores do condomínio. ;Temos que acompanhar as novas tendências. Os prédios do Sudoeste são espelhados, modernos, por que não podemos modernizar nossos blocos também?;, questiona o síndico do prédio, Nélio Penha. ;As pastilhas antigas, de 1cm, nem existem mais. Acho essa interferência do Iphan inaceitável;, acrescenta o morador da SQS 307.

Na SQS 105, construída pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (Iapi), o projeto arquitetônico dos prédios é de autoria de Hélio Uchôa, que trabalhou no escritório de Lucio Costa. O predomínio dos cobogós de cerâmica vermelha remetem ao projeto dos edifícios do Parque Guinle, concebidos por Lucio. Hoje, alguns permanecem com as características


Escalas urbanas
O que é protegido em Brasília são as chamadas escalas urbanas. O tombamento de Brasília é volumétrico, ou seja, não é possível alterar as alturas dos prédios, por exemplo. Por isso, é até possível demolir todos os edifícios de uma superquadra e construir outros, mas o gabarito de seis andares, a taxa de ocupação, o pilotis livre, o acesso viário e a faixa verde devem ser mantidos. O desrespeito inclui, entre outros, cercar pilotis com grades e cercas vivas, construir apartamentos na cobertura dos blocos, ocupar áreas públicas nos comércios locais e instalar quiosques e barracas nas áreas verdes.

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