Cidades

Servidores burlam escalas para trabalhar na rede privada, diz investigação

Dois funcionários foram levados coercitivamente para prestar depoimento na Delegacia de Combate aos Crimes contra a Administração Pública (Decap)

Otávio Augusto
postado em 09/12/2016 06:00
Uma das ações de busca e apreensão ocorreu no Centro de Saúde nº 3, local onde dois servidores suspeitos de fraudar atestados e receitas trabalham
As investigações começaram há oito meses e, inicialmente, envolveriam apenas a emissão de atestados ;frios; entre servidores da Secretaria de Saúde. O alto índice de profissionais afastados do trabalho ; o índice chegou a 53,7% em um ano e meio ; causou estranhamento na Corregedoria da pasta. A cada fato apurado, porém, a dimensão do esquema aumentava de tal modo que nem o feriado do Judiciário, em comemoração ao dia da Justiça, impediu o Ministério Público (MPDFT) de deflagrar, ontem, a Operação Trackcare. A partir daí, a história ganhou novos personagens e formas de atuação. As investigações apontam, inclusive, que políticos se beneficiaram nas eleições de 2014 com a distribuição de remédios, obtidos de forma fraudulenta.

Logo no início da manhã, mandados de busca e apreensão foram cumpridos no Cruzeiro, no Sudoeste e no Centro de Saúde N; 3 do Guará. Dois servidores tiveram de prestar depoimento à Delegacia de Combate aos Crimes contra a Administração Pública (Decap). Dois promotores e um delegado cuidam do caso. Além dos atestados fraudulentos, que o Correio revelou com exclusividade na edição de quarta-feira, há indícios de distribuição de medicamento com uso de receitas falsas e adulteração de dados dos sistemas de ponto da Secretaria de Saúde. Entre junho de 2015 e setembro passado, 2.578 dos 4,8 mil médicos da rede pública pediram afastamento do trabalho (veja A fraude).

[SAIBAMAIS]Não é possível afirmar ainda quantos atestados são ;frios;, mas as investigações identificaram casos específicos de servidores que burlam plantões e escalas para trabalhar na rede privada (leia Casos apurados). Por esse motivo, o técnico de enfermagem Marcelo Cereja e a enfermeira Daniela Moiana foram levados coercitivamente à Decap. Ele apresentou 16 atestados e teve 47 abonos duvidosos na folha de ponto. Ela também homologou 18 licenças e teve 18 incidências estranhas ; a principal delas, 402 horas-extras em cinco meses. Eles não responderam a nenhuma pergunta dos investigadores e foram liberados.

Os servidores se revezaram nos últimos dois anos na chefia do Centro de Saúde N; 3 do Guará. Segundo as investigações, a dupla usava carimbos e assinaturas falsas de cinco médicos para abonar as próprias faltas ; um dos profissionais usados no esquema deixou a Secretaria de Saúde em 2001. Os investigadores chegaram aos suspeitos por meio de denúncia anônima. ;Não há registro de nenhum atendimento médico dessas duas pessoas. Precisamos da colaboração, com outras denúncias, para termos acesso a mais informações;, ponderou o promotor de Defesa da Saúde (Prosus), Luis Henrique Ishihara. Ele recolheu caixas de documentos e as folhas de ponto de Marcelo e de Daniela. A Secretaria de Saúde garantiu que vai iniciar ;uma rigorosa investigação;, mas admitiu a vulnerabilidade na fiscalização, além de informar que não há nada que possa ser feito para ;fortalecer; a segurança dos sistemas de ponto.

Fiscalização

A fraude pode ainda ter levado à morte pacientes na rede pública. Duas pessoas vieram a óbito num hospital em que estavam escalados pelo menos três médicos. Ninguém apareceu para trabalhar. O caso é investigado em sigilo. Outros envolvidos na fraude nem sequer cumpriam o cronograma de trabalho. Quando estavam escalados para o Hospital Regional de Taguatinga (HRT), por exemplo, registraram presença no Hospital de Base (HBDF). ;Se todos os profissionais estivessem exercendo suas atividades, não haveria essa sangria na rede pública. A falta de fiscalização e a certeza da impunidade levam os profissionais a cometerem fraudes como essa;, criticou o promotor de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-vida), Maurício Miranda.

Os envolvidos podem ser penalizados por seis crimes: peculato, falsificação de documentos, falsidade ideológica, inserção de dados falsos em sistema de informações e associação criminosa. ;Vamos cobrar daqueles gestores que registram os atestados. Precisamos que protocolos sejam implantados para frear essa prática. As chefias que fazem o controle e o registro tiveram uma conivência passiva;, completa Miranda. O promotor destaca que há indícios de que candidatos tenham usado recursos públicos para angariar votos. ;O paciente que recebe medicamento também é eleitor;, pondera. O Correio apurou que as primeiras pistas estão ligadas a servidores específicos que apoiaram candidaturas ou trabalharam como cabos eleitorais.

O papel deles na investigação


Corregedoria
; A apuração começou em abril. O órgão estima que até 40% dos 2,5 mil atestados homologados entre junho de 2016 e setembro passado são fraudulentos. Uma parcela desses médicos se ausenta dos afazeres nos hospitais públicos, mas continua a atuar na rede privada. Com a fraude, eles recebem os dois salários, mas trabalham efetivamente em apenas um local ; normalmente, clínicas particulares ou próprias.

MPDFT
; As promotorias de Defesa da Saúde (Prosus) e de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-vida) deflagraram, em conjunto com a Polícia Civil, a Operação Trackcare para investigar as fraudes. Dois servidores foram levados para prestar depoimento coercitivamente. Os promotores vão pedir que as secretarias de Saúde e de Planejamento implantem mecanismos de controle e fiscalização dos atestados médicos.

Seplag
; Há uma discussão, segundo a pasta, que estuda maneiras de melhorar a forma de tratamento dos dados. A Seplag garante que todas as informações serão digitalizadas a partir do próximo ano. Para as investigações continuarem, o MPDFT e a Corregedoria precisam da Classificação Internacional de Doença (CID). Sem o dado, não é possível saber a causa do afastamento e se a licença é válida. A SubSaúde discute a possibilidade de abrir a confidencialidade da informação.

SindMédicos
; Vai pedir acesso às investigações. A entidade diz que nunca recebeu denúncias sobre o assunto e que, se a fraude de fato ocorre, é de maneira pontual. Segundo cálculos do sindicato, há um deficit de 3,5 mil médicos na rede pública. Sobre os afastamentos, o SindMédicos atribui o alto índice de licenças às péssimas condições de trabalho.

CRM-DF
; Para o Conselho Regional de Medicina, cabe à Secretaria de Saúde a apuração das denúncias no âmbito administrativo, sendo que os casos concretos devem ser encaminhados à entidade para apuração do ;ponto de vista ético-profissional;. As eventuais denúncias ou suspeitas devem ser apuradas com rigor, com amplo direito de defesa, evitando-se generalizações que prejudicam a relação médico-paciente e não trazem benefícios à assistência oferecida.


Casos apurados

; Uma pediatra que deveria clinicar 60 horas semanais no DF, mas mora no Rio de Janeiro.
; Um casal de cardiologistas que atende no Hospital Regional do Gama (HRG). Quando um tira férias, o outro, no mesmo período, entra com o afastamento.
; Um neuropediatra que está há mais 280 dias sem trabalhar na rede pública e, segundo apuração da Corregedoria, atende regularmente numa clínica em Águas Claras.
; Uma médica que estava afastada havia dois meses, suspendeu o atestado, participou como palestrante em um evento na Secretaria de Saúde e, no outro dia, protocolou novamente a licença.


A fraude

; De 856 clínicos, 541 entraram de licença entre janeiro e setembro.

; Dos 614 ginecologistas da rede pública, 425 protocolaram atestados médicos.

; Dos 629 pediatras, 194 se ausentaram por mais de três dias.

; Dos 4,8 mil médicos da rede, 2,5 mil pediram afastamento, em um ano e meio.

; Até setembro, 63 anestesiologistas protocolaram atestados.

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