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UnB completa, daqui a um mês, cinco décadas e meia de militância

Série de reportagens traça perfil da instituição por meio de quem a transforma dia após dia; no passado, luta era contra a ditadura. Hoje, um importante movimento é pela garantia dos direitos das mulheres

Renato Alves
postado em 21/03/2017 06:03
Aos 22 anos, Ayla Viçosa representa uma geração de alunas que batalha arduamente contra o machismo
Prevista no plano original da nova capital, a Universidade de Brasília (UnB) nasceu do desejo de Darcy Ribeiro em criar um modelo de ensino superior diferente daquele em vigor no Brasil. A proposta do antropólogo sofreu dura resistência. Responsável por tocar as obras da cidade, Israel Pinheiro, por exemplo, discordava do modelo proposto. Mas, em 15 de dezembro de 1961, o presidente João Goulart criou a UnB, por meio da Lei n; 3.998. Ela saiu do papel em 21 de abril de 1962. Prestes a completar 55 anos, a instituição continua inovando, incomodando e provocando transformações na sociedade.

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Ainda em seus primeiros anos, a UnB sofreu um duro golpe. Militares interromperam o plano de Darcy. Houve resistência, sufocada com perseguições, prisões, desaparecimento. Desde então, professores, funcionários e alunos da UnB estiveram na linha de frente das discussões nacionais. E, como sonhava Darcy, a instituição passou a representar a luta pelo progresso, pela defesa dos direitos humanos, pela democracia.

Foi assim nas Diretas Já, no impeachment de Fernando Collor e, mais recentemente, na criação de cotas e ações feministas. Nos anos 2010, a universidade candanga viu a ascensão de uma ala mais conservadora em seu seio. Ela tomou, democraticamente, o Diretório Central dos Estudantes (DCE), e a divisão ideológica nacional também ganhou o câmpus, provocando acalorados debates e até graves episódios motivados pelo ódio. Desse caldeirão, saíram consagrados pesquisadores, pensadores, artistas, personalidades e políticos.

Com quatro câmpus, mais de 30 mil alunos e 150 cursos de graduação, a UnB chega aos 55 anos com uma qualidade de formação destacada em avaliações nacionais e internacionais. Para marcar a data, o Correio inicia hoje uma série de reportagens que conta a história dela e das pessoas que a mantêm na vanguarda e entre as melhores do país.

A vez das minas


Um dos espelhos atuais dessa pluralidade e da vocação de luta da UnB é o movimento feminista. As estudantes começaram a realizar atos a partir de 2010. Organizadas em coletivos e tendo as redes sociais como aliadas, ganharam força, promovendo ocupações, palestras, seminários. Em 2014, estudantes criaram uma página em uma rede social chamada Fiu Fiu ; UnB, que recebe e publica relatos de mulheres que sofreram abusos.

Entre as principais líderes das minas (como costumam se apresentar) da UnB está uma estudante de ciências sociais de 22 anos. Ayla Viçosa milita desde 2011, quando ingressou na universidade. ;Meu primeiro contato com o feminismo foi aos 16 anos, quando vi notícias da Marcha das Vadias. Decidi pesquisar o que era aquilo que dizia defender as mulheres, mas tinha ;vadia; no nome. Mas só comecei a participar do movimento quando entrei na UnB;, conta ela.

Ayla abraçou de vez a causa feminista em 2013, ao ingressar no coletivo Juntas. A partir de então, começou a organizar eventos de todos os tipos, dentro e fora da UnB. ;Nunca quis ser uma líder nem quero ser a porta-voz, mas quero provocar a luta pela igualdade;, pondera. Para ela, houve avanços na sua luta, mas falta muito. ;Temos mais respeito e espaço. Mas isso foi uma conquista das estudantes, nada institucional;, destaca.

A universitária diz que o assassinato da estudante Louise Maria da Silva Ribeiro, 20, em um laboratório do câmpus Darcy Ribeiro, há um ano (veja Memória), provocou a indignação das mulheres da comunidade acadêmica e uma maior união delas. ;Além de cruel, o crime aconteceu um dia após o encerramento da Semana das Mulheres na UnB. Foi tudo muito chocante;, afirma.

Para Ayla, o que as alunas de todos os câmpus da UnB mais precisam de imediato é de segurança. ;Precisamos de medidas como a melhoria da iluminação pública e do transporte noturno. Também lutamos por um fraldário nos banheiros;, exemplifica. Bissexual, solteira, Ayla diz ter o apoio da família em sua militância. ;Minha mãe só tem medo que eu me machuque em alguma manifestação ou perca o emprego;, observa.

A estudante, que faz estágio no Ministério da Justiça, ressalta a importância da mãe e da avó materna na formação do seu caráter: ;Gaúchas, elas sempre foram exemplos. A minha avó se separou do meu avô ainda jovem, nos anos 1960. Pegou as duas filhas e veio com elas para Brasília, para recomeçar a vida. E ainda teve outros dois filhos. A minha mãe fez quase o mesmo: casou aos 21 anos, separou logo em seguida, estudou na UnB, criou os filhos, construiu a vida dela.;

Mas o que mais marcou Ayla foi um conselho dado pela mãe quando a hoje líder feminista era uma adolescente e lidava com o dilema sobre que carreira profissional seguir: ;Um dia, minha mãe me disse assim: ;Filha, para ser considerada boa em alguma coisa, você tem que ser cinco vezes melhor do que um homem;;.

Intervenção digital

Além de servir como um espaço terapêutico, a Fiu Fiu debate temas sobre estupro e divulga iniciativas de combate à violência contra a mulher. Para participar, basta acessar a página do movimento no Facebook (facebook.com/fiufiu.unb) e enviar o relato ou debater as questões abordadas.

413
quantidade de candidatos no primeiro vestibular da UnB, em 1962

30 mil
quantidade de alunos matriculados na UnB atualmente

R$ 14 bilhões
valor em cruzeiros pedido, em 1962, por Darcy Ribeiro, a ser financiado em 40 anos com juros de 2% ao ano. Um ano depois, começaram as obras do Instituto Central de Ciências (ICC), projetado por Niemeyer.

Ao ar livre
Após a inauguração, em 21 de abril de 1962, as primeiras aulas da UnB eram ministradas ao ar livre, nas proximidades do Auditório Dois Candangos e no 9; andar do Ministério da Saúde. Pouco tempo depois, foram erguidos os institutos e as faculdades.

Memória


Asfixiada em laboratório

Em 10 de março de 2016, Vinícius Neres Ribeiro, 19 anos, então estudante de biologia, asfixiou a colega Louise Maria da Silva Ribeiro, 20, com clorofórmio em um laboratório da UnB. Vinícius havia enviado uma mensagem de texto a Louise, afirmando que ia se matar caso ela não fosse encontrá-lo.

Segundo a denúncia do Ministério Público, ;o acusado, premeditou o crime de forma meticulosa, decidindo hora, lugar e meio de execução;. Ainda de acordo com o documento, ;ao encontrar-se com Louise, Vinícius a atacou com um lenço embebido em clorofórmio para reduzir sua resistência;.

Após asfixiar Louise, Vinícius enrolou o corpo dela em um colchão inflável, colocou-o em um carrinho de laboratório e transportou-o para o carro da jovem. Foi a um local ermo e tentou atear fogo ao cadáver. Por ter sido praticado contra uma mulher, em contexto de violência doméstica e familiar, o crime foi classificado, também, como feminicídio.

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