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Conheça a história dos oleiros de São Sebastião, que ergueram Brasília

Para a construção de Brasília, São Sebastião foi transformada em uma grande olaria, de onde saíam os tijolos que construíram Brasília. Projeto Memórias Oleiras busca resgatar essa história

Priscilla Miranda*
postado em 24/04/2017 06:00
Carmem de Souza, moradora integrante do Projeto Oleiras, em São Sebastião
Foi da pequena Agrovila São Sebastião que saiu parte dos tijolos que deram consistência aos sonhos de Oscar Niemeyer e Lucio Costa. A vocação da hoje região administrativa manifestou-se desde os primórdios, há quase 60 anos, quando começou a ser povoada. A cidade nasceu da desapropriação parcial de três fazendas de Luziânia (GO). ;O processo começou por volta de 1955, quando foi montada uma comissão do governo de Goiás para executar o trabalho. Nesse período, todas as fazendas do DF eram particulares ; elas foram compradas e doadas à União. Tudo para acelerar o processo de construção de Brasília;, explica Wilson Vieira, ex-diretor do Arquivo Público do Distrito Federal.
Um ano após o início das obras da nova capital, ao menos 10 olarias foram instaladas na agrovila. Além delas, 20 pipas para o tratamento do barro e quatro cerâmicas, onde eram feitos os tijolos industriais. As famílias traziam consigo não apenas a força dos braços, mas sonhos de uma vida melhor. Aos 73 anos, Maria Leontina de Jesus é uma das primeiras moradoras de São Sebastião. A mineira de Patos de Minas chegou à cidade aos 19 anos, na companhia do marido. ;Moramos em Unaí e no Gama, mas lá não tinha serviço. Viemos tentar a sorte em São Sebastião e conseguimos trabalho em uma olaria. Era a única coisa que tinha na cidade e eu aprendi trabalhando, cortando tijolo;, conta.

[SAIBAMAIS] O corte de tijolos começava de madrugada, por volta de 1h, e só terminava sob o sol das 10h. Ainda pela manhã, os caminhões das construtoras partiam, carregados com mais de mil blocos maciços. Apesar do trabalho pesado, Maria Leontina guarda boas lembranças. ;A vivência foi muito boa, fiz muitas amigas. Tínhamos filhos e, como a gente não podia comprar muita coisa, soltávamos os meninos para brincar e íamos cortar tijolos;, relata. A oleira ficou no ramo por mais de 10 anos. Quando o galpão para o qual prestava serviço fechou as portas, passou a ser empregada doméstica.
A extinção dos galpões está relacionada aos avanços do Plano Piloto ; em meados de 1980, as principais obras estavam concluídas. ;As pessoas que trabalhavam nas olarias fechadas não tinham para onde ir e começaram a se fixar nas margens do Córrego Mata Grande e do Ribeirão Santo Antônio. Assim se formou a Agrovila São Sebastião;, detalha Gustavo Chauvet, pesquisador da história ambiental de Brasília.

São Sebastião, hoje

Hoje, São Sebastião conta com 100.161 habitantes, de acordo com a mais recente Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio. A maior parte deles (53,84%) veio de Minas Gerais, Bahia e Maranhão. Moradora da cidade desde 1963, Carmen Souza, 70 anos, vê com bons olhos o desenvolvimento na região. ;Ficou muito bom. Antes, era tudo muito difícil;, conta. Mineira de São Gotardo, ela chegou para visitar um tio e nunca mais voltou. É que, durante a passagem, Carmen se encantou por um oleiro recém-chegado do Piauí.
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Casaram-se e tiveram cinco filhos. Com restos de tijolos, cedidos pelo patrão dele, construíram uma casinha de dois cômodos. ;Antes de ele conseguir esse trabalho, nós capinamos um lote. A cada machadada que dávamos, uma cobra aparecia. Também chegamos a ficar um mês comendo só abóbora e feijão, sem tempero algum;, relata. Segundo a pioneira, as novas gerações sequer imaginam como eram as condições de vida. ;Eu conto para os meus netos e eles fazem é rir. Não acreditam de jeito nenhum que era desse jeito;, observa.

O passado retorna

São histórias como a de Maria Leontina de Jesus e Carmen Souza que um grupo de moradores e ativistas culturais pretende preservar. Criado em 2010, o projeto Memórias Oleiras colhe documentos, fotos antigas e depoimentos de pioneiros de São Sebastião. A ideia surgiu da cabeça de Edvair Ribeiro, 56 anos, ex-oleiro, poeta e cronista. Ele se considera um griô, ou seja, um guardião da cultura oral. Sua principal preocupação era que as origens da região fossem esquecidas. ;Tinha muita gente com conteúdo, mas que estava à margem da sociedade. A ideia do projeto é trazer narrativas e vivências de pessoas que tiveram experiência na construção da cidade;, resume.

Edvair uniu esforços com integrantes do Movimento Cultural Super Nova. Em 2016, conseguiram recursos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC). Com esse aporte, mapearam 350 pioneiros e passaram a organizar a memória da cidade. Atualmente, o projeto é desenvolvido por 16 membros, incluindo fotógrafos, cinegrafistas e pesquisadores. O designer Ricardo Caldeira, 28 anos, explica que o trabalho reforçou seus laços com São Sebastião. ;Durante a infância, eu tinha vergonha, por associar a cidade à pobreza. A partir da adolescência, passei a me sentir pertencente e a ter orgulho;, relata. ;Entendi que a forma como a cidade é retratada é reflexo de diversas desigualdades, e eu faço parte de um conjunto de agentes que transforma essa realidade.;

Riqueza cultural

A riqueza cultural de São Sebastião foi o que chamou a atenção do produtor audiovisual Gustavo Serrate, 35 anos. O morador da Asa Norte aderiu ao projeto em janeiro passado e diz que o processo tem sido extremamente gratificante. ;A gente só pensa Brasília como a realidade fechadinha do Plano Piloto, mas existem raízes. O Memórias Oleiras é um museu de pessoas e de histórias ; ele enriquece muito a visão do que é São Sebastião e, consequentemente, do que é Brasília;, acredita.

Até o momento, a equipe entrevistou cerca de 30 pioneiros. Os pesquisadores têm pressa em avançar, pois a maioria deles é idosa ; 56 deles faleceram desde o início dos trabalhos, sem terem sido ouvidos. Todos estão convidados a contribuir. Fotos de época podem ser enviadas no e-mail memoriasoleiras@gmail.com. O site www.memoriasoleiras.com.br reúne todos os achados.

Realizadores locais

O movimento cultural Supernova nasceu em 2003, com o objetivo de dar visibilidade a artistas de São Sebastião. No início, eram realizados sarais mensais. Depois, vieram projetos maiores e ao ar livre, como o Domingo no Parque, a Noite Supernova, o Superrock e o Vôlei Supernova.

Nascimento de uma R.A.

Até junho de 1993 a cidade era considerada parte do Paranoá, mas a partir da Lei n; 467 de 25 de junho, foi instituída R.A. XIV.
* Estagiária sob a supervisão de Gustavo T. Falleiros

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