Cidades

Aterro da Estrutural expõe, há 60 anos, mazelas sociais e ambientais

O Lixão da Estrutural, em processo de desativação, está a 15km da Praça dos Três Poderes, centro das decisões políticas do país e coração da capital da República

Ketheryne Mariz/Diário de Pernambuco, Gabriella Bertoni - Especial para o Correio, Lucas Fadul - Especial para o Correio, Deborah Fortuna, Walder Galvão*
postado em 10/05/2017 07:31
O depósito improvisado nasceu praticamente com Brasília. Passados quase 60 anos, o espaço acumula 40 milhões de toneladas de detritos
Estradas de terra cortam o Lixão da Estrutural de fora a fora. Por elas trafegam caminhões abarrotados de resíduos. O ar é insuportável, devido ao cheiro azedo misturado aos gases provenientes de decomposição de produtos descartados, principalmente domésticos. Há uma energia pesada no local. As condições insalubres, contudo, não impedem a presença de cerca de 2 mil homens e mulheres, que disputam cada metro quadrado do segundo maior lixão a céu aberto do mundo e o maior da América Latina, em busca da sobrevivência. Essa rotina extenuante e retrato da exclusão social são expostos pelo Correio na série de reportagem Lixão, problema de todos nós, publicada a partir de hoje.

[SAIBAMAIS]O Lixão da Estrutural, em processo de desativação, está a 15km da Praça dos Três Poderes, centro das decisões políticas do país e coração da capital da República. É tão grande em volume que fica atrás apenas do Lixão de Jacarta, na Indonésia. A diferença é que a população de Jacarta é seis vezes maior do que a do DF. O depósito improvisado nasceu praticamente com Brasília. Passados quase 60 anos, o espaço acumula 40 milhões de toneladas de detritos. O maciço ; nome técnico para a parte central onde é disposto o lixo domiciliar ; tem 55m de altura.

Contaminação e risco de doenças

O trabalho insalubre e as condições precárias impõem aos catadores de lixo uma rotina de vulnerabilidades sanitárias e de saúde. Estudo de grupo de pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) revela dados alarmantes: quase um terço dos trabalhadores relataram doenças contraídas no serviço. A presidente da Cooperativa de Materiais Recicláveis da Cidade Estrutural (Coorace), Lúcia Fernandes do Nascimento, afirma que sabe de muitos desses casos, mas não tem conhecimento de laudos técnicos que comprovem a relação das enfermidades com o local de trabalho.

O descarte de lixo, entre eles os tóxicos, como bateria de carro e de celular e pilha, expõe os trabalhadores a riscos. Entre eles, o pernambucano Pedro Abreu, 64 anos, 29 deles em cima das montanhas de lixo da Estrutural. ;Uma vez, o governo falou que as pessoas com mais de 50 (anos) que trabalhavam aqui dentro estavam praticamente doentes. É a evaporação de tudo quanto é bateria, de tudo que lança chumbo na atmosfera. Nós sofremos disso aqui;, lamenta.

Um ataque ao meio ambiente

O Lixão da Estrutural fica colado ao Parque Nacional de Brasília, unidade de conservação que abriga o sistema Santa Maria/Torto, segundo maior reservatório de água do DF, responsável pelo abastecimento de 25% da população. ;O Lixão é um exemplo de como não se deve fazer gestão ambiental no Brasil;, aponta o especialista Gustavo Souto Maior Salgado.

Salgado vê no Lixão da Estrutural maneira inadequada de tratamento de lixo por causa de diversos problemas que deveriam ter sido resolvidos anos atrás. Do ponto de vista ambiental, o lugar prejudica o solo, causa infiltração do lixo no subsolo e contamina o lençol freático. Outra preocupação é que muita gente queima lixo, o que provoca incêndios florestais em áreas próximas ao parque. Além disso, há acúmulo de gases devido a resíduos enterrados.

Espaço para a exclusão social

A realidade dos catadores vai muito além da insalubridade inerente ao trabalho. A degradante jornada diária constitui processo marcante na vida dessas pessoas e, por vezes, fragiliza oportunidades de conseguirem outro ofício. O baiano Lourisvaldo das Cruzes Prata, 46 anos, trabalha no Lixão da Estrutural há mais de 20 anos e não consegue se ver fazendo outra coisa. ;Não tenho alternativa. Quando eu cheguei aqui, trabalhava como jardineiro, mas é complicado;, queixa-se.

A professora da Universidade de Brasília (UnB) Christiane Machado Coêlho, especialista em sociologia urbana, explica que, quanto mais tempo no Lixão, mais os trabalhadores perdem o vínculo com o mercado formal de trabalho. Resultado: dificuldade maior na reinserção. ;Isso é cumulativo. Quem trabalha no Lixão tem a identidade social complexada, o seu reconhecimento social vai sendo fragilizado com o passar do tempo;, alerta. Como solução, ela defende a elaboração de projetos de médio e longo prazos para que essa mão de obra seja qualificada e reaproveitada de outras maneiras. ;O sonho de todos nós é ter uma vida melhor e dar tranquilidade para os nossos filhos e um estudo melhor para eles;, diz Vilma Nunes de Freitas.

Renda mensal cada vez menor

Mesmo com o trabalho árduo de recolher, em média, 2 mil toneladas de lixo por mês, os catadores têm uma renda baixa. O preço é estipulado pelo atravessador ; ou seja, a pessoa que comercializa o material recolhido ;, e o catador fica refém desse comércio. A renda mensal depende de fatores como frequência, capacidade individual e horas trabalhadas. O Correio apurou que esse valor é de cerca de R$ 900 mensais.

Muitos catadores alegam que, antes, a comercialização de material reaproveitável era vantajosa. Porém, hoje, caiu o volume de lixo reciclável de qualidade. ;A gente queria que melhorasse, que houvesse uma coisa melhor pra gente. Aqui, não está dando mais dinheiro como antes. Fazemos um ou dois sacos, o lixo está pouco;, reclama a jovem catadora de 21 anos Leidiane Garcia Rodrigues.

40 milhões de toneladas

Quantidade de lixo no aterro

55 metros

Altura do lixo, o equivalente a um prédio de 18 andares


2 mil toneladas

São produzidas por dia no DF (2,8 milhões de habitantes)

6 mil toneladas

São produzidas por dia em Jacarta, na Indonésia (18 milhões de habitantes)

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