Cidades

A vida a 33 1/3 rpm

Guilherme Goulart
postado em 05/08/2017 19:07
Sempre que sobra um tempinho, eu escapo de mansinho para o escritório de casa com uma única e especial missão: ouvir música. Ali, rodeado por centenas de livros e badulaques colecionáveis, conecto-me à aparelhagem de som a fim de desacelerar a vida. A rotina, que diariamente nos atropela a 100km/h, reduz a marcha a exatas 33 1/3 rotações por minuto. Diante da vitrola, vinil após vinil, o (meu) mundo perde velocidade ao ritmo analógico. Pelas ondas sonoras do blues, do roquenrol e da MPB, as contas somem da vista, o trabalho fica para depois e o celular, finalmente, se cala.
Mas alcançar o momento de puro êxtase musical depende de dedicação. E uma das etapas mais deliciosas dessa fuga saudável da realidade é a busca. Sim, porque o apaixonado por LPs funciona como um garimpeiro, um arqueólogo à procura de tesouros escondidos. Em um mercado que quase se perdeu no tempo e no espaço, o explorador de long plays vê-se obrigado a mergulhar em universos paralelos para encontrar discos de bandas que, muitas vezes, nem existem mais. Aí, valem as conexões, os contatos, o faro e até a sorte nessa aventura em tempos on demand, com milhares de filmes e músicas digitais à disposição a qualquer hora e à distância de um clique.

A internet auxilia a jornada, mas a compra on-line é cercada de incertezas, principalmente quanto à integridade dos discos. Há a alternativa dos sites internacionais, mas as taxas na alfândega tornam o processo inviável para bolsos limitados. Para complicar, Brasília tem um terreno pouco fértil à exploração de fósseis musicais. Há boas lojas na Asa Norte, no Conic, em Taguatinga, além das grandes redes de entretenimento. Mesmo assim, nada muito empolgante. Felizmente, existem por aqui alguns bravos guerreiros capazes de manter a vibe do long play pulsante. Atuam como Indianas Jones do cerrado, com disposição para garantir vida longa aos discos de vinil.

É o caso dos irmãos Marcondes. A dupla João e Guga praticamente largou o jornalismo para viver da compra e venda de LPs. Parece loucura, mas a empolgação dos caras reforça a seriedade da coisa. O trunfo deles é a informação. O conhecimento ;discopédico; impressiona, mesmo dos gêneros musicais mais complexos. Os principais expoentes do jazz fusion, do blues rock, do indie e da psicodelia brasileira são velhos chapas dos Marcondes. Para encontrar os dois, é só ficar atento às feiras itinerantes de vinil. Esses beduínos da seca do Distrito Federal são os principais organizadores delas, como a que rola no Venâncio 2000 quase todo início de mês.

Outro bastião do long play na capital federal responde pela alcunha de Alexandre Trovão, dono da Modern Music, na 705/905 Sul. De ex-cliente a proprietário, Trovão comanda a lojinha que faz parte da arqueologia musical brasiliense. Contra tudo e contra todos, o comércio fechou e reabriu três ou quatro vezes nos últimos anos. Detrás do balcão, Trovão oferece uma infinidade eclética de discos novos e usados. Também não deixa ninguém sair de lá sem compartilhar as novidades da música. No meu caso, saí babando por bandas como a sueca Blues Pills, a britânica Temples e a australiana Tame Impala, todas com seus respectivos bolachões.

A minha caminhada no mundo do vinil, entretanto, carrega um arrependimento. No início dos anos 1990, entorpecido pelo heavy metal, tomei uma atitude impensada, capaz de maltratar a consciência quase 30 anos depois. Não sei se convencido ou encorajado por um amigo metaleiro, recolhi a maioria dos meus discos de rock nacional e vendi tudo por ninharia em uma loja do Conic. E ali mesmo gastei o dinheiro, trocando todos os LPs da Legião Urbana, do Capital Inicial e da Plebe Rude por camisetas e bonés pretos do Metallica e do Iron Maiden. À época, tinha certeza de que fazia a coisa certa. Mas hoje lamento o vacilo. Por causa disso, a busca por vinis também recebe um olhar atento a esses discos, na esperança de, um dia, recuperá-los.

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