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Com metade da área devastada, cerrado pode desaparecer ainda neste século

A escassez de água é só um dos reflexos desse processo. Em 12 anos, as espécies animais ameaçadas de desaparecer passaram de 75 para 176

Flávia Maia
postado em 19/11/2017 08:00
Incêndio na Chapada evidenciou os riscos que o cerrado corre com a expansão da cidade e do agronegócio

O cerrado sempre foi um bioma arredio. Quem quis vida fácil, atrás de riqueza passageira, como o ouro abundante do século 18, deu meia-volta. Quem buscou progresso, insistiu, ficou. Com cal, o solo tornou-se menos ácido e passou a aceitar espécies, até então, estranhas. A terra ganhou gado e lavoura. De uma clareira na mata, as árvores passaram a dividir espaço com o concreto das cidades. De arisco, o bioma ganhou ares generosos. Com trabalho e com uma mudança ali e acolá, o homem fez dele a casa de muitos brasileiros.

Nos últimos 60 anos, o cerrado mudou como nenhum outro bioma brasileiro. Em suas terras, o Brasil expandiu a fronteira agrícola, garantiu a integração nacional e possibilitou a mais monumental façanha arquitetônica brasileira: a construção de Brasília. Mas o que tinha aspecto de simbiose começou a apresentar desgaste. O preço da transformação veio em forma de desequilíbrio. Se as chuvas tinham data para começar e período certo de ação, agora são perseguições diárias dos meteorologistas. Se jorrava água pelas nascentes, os rios e reservatórios estão cada vez mais secos. Se do fogo brotavam espécies, agora elas morrem nas chamas.

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O desequilíbrio ambiental começa a fazer parte do cotidiano e passa a ter um custo social e monetário para os moradores do cerrado. A mais drástica crise hídrica da história do Brasil Central é um exemplo. Brasília passa por racionamento e o Descoberto, seu principal reservatório, registrou 5% de volume. Em Cristalina (GO), as outorgas para irrigação foram suspensas e os agricultores tiveram que aprender a gerir o recurso. Em Goiânia (GO), moradores invadiram a caixa d;água da empresa de saneamento para conseguir o líquido. A falta de água também atingiu a geração de energia. O governo acionou as termelétricas, levando os consumidores a pagarem mais caro, por meio da bandeira vermelha.



Mas a conta não para por aí. As chuvas cada vez mais raras e intensas causam destruição quando chegam, como o vivido por Brasília e Abadiânia (GO) há duas semanas. O maior incêndio do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO), mês passado, também foi um alerta do prejuízo da perda de biodiversidade. Para mostrar o cansaço do bioma, o Correio publica a partir de hoje uma série de reportagens sobre a situação e as perspectivas para o cerrado.

Contagem regressiva

Nos últimos 60 anos, o cerrado mudou como nenhum outro bioma brasileiro

Especialistas calculam que, se a perda de 1,1% da superfície original por ano se mantiver, o bioma deixará de existir na primeira metade deste século. Alguns estudos cravam que o fim será em 2030. Os mais otimistas estimam 2050. De acordo com números do Ministério do Meio Ambiente, a média é de mais de 9 mil quilômetros quadrados de perda da cobertura vegetal por ano. Área correspondente a um território e meio do Distrito Federal. Há uma divergência entre a quantidade de área de cerrado devastada. O governo federal divulga 43,42%. Organizações ambientalistas falam em 50% de perda.

A escalada da destruição provoca uma cadeia negativa. A perda de cobertura vegetal nativa e a consequente modificação no ambiente impactam no ciclo hidrológico, com lençóis freáticos cada vez mais vazios, chuvas mais esparsas e fortes e rios com vazão menor. ;Acabando com a savana mais rica do planeta, estamos dando um tiro no pé. Nas cidades, a impermeabilização não deixa mais penetrar água no solo. No campo, o agronegócio consome de 70% a 80% da água do Brasil. A demanda só aumenta. Vai haver um colapso;, alerta Reuber Brandão, professor de Engenharia Florestal da Universidade de Brasília (UnB).

Animais ameaçados

Com o desmatamento, em 12 anos, as espécies animais ameaçadas de extinção passaram de 75 para 176. O mais grave: nesse período, nenhuma conseguiu deixar a lista. Quatro estão categorizadas como criticamente em perigo, sob risco iminente de desaparecerem. Trata-se da borboleta Hyalyris fiammetta, de duas aves ; o pararu-espelho e a rolinha-do-planalto ; e do rato candango. Exemplares deste foram vistos pela última vez por funcionários da Novacap, durante a construção de Brasília, na região da Candangolândia e do Zoológico.

Incêndio de grandes proporções no Jardim Maytrea no Parque Nacional Chapada dos Veadeiros

Na flora, há 310 tipos ameaçados. Das 1.140 plantas que podem ser perdidas, 657 já são consideradas condenadas à extinção, apontam estudos baseados nos dados da organização britânica Lista Vermelha de Espécies em Extinção. A velocidade da destruição maior do que a capacidade de ações públicas e privadas de conservação preocupa especialistas. ;O planeta não aguenta do jeito que a gente está indo. Não é só o cerrado. O planeta vai estourar antes e o cerrado vai embora junto;, lamenta José Felipe Ribeiro, pesquisador da Embrapa Cerrados.

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