Ciência e Saúde

Estamos brincando de Deus?

Quatro renomados cientistas dizem ao Correio como encaram a polêmica entre ciência e religião, reacendida na semana passada com o anúncio da primeira célula comandada por genoma artificial

postado em 30/05/2010 13:54
Livro do Gênesis, capítulo 2, versículo 7: ;E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida;. E, então, o homem adquiriu conhecimento, simulou os instantes após o big bang (a explosão cósmica que originou o universo), produziu cópias idênticas de animais, descobriu células capazes de originar outros órgãos, criou uma célula viva com um genoma artificial. Para muitos religiosos, ele agora brinca de ser Deus. O norte-americano Athur Caplan, diretor do Centro para Bioética da Universidade da Pensilvânia, discorda dessa visão, mas alerta: ;Se você for um cientista irresponsável ou não transparente, ou agir por outros motivos, então você estará ;brincando; com tecnologia poderosa;.

A polêmica ganhou força no último dia 21, quando a revista Science publicou um estudo sobre a fabricação em laboratório do primeiro genoma de bactéria sintética. A ;vida artificial; provocou um estrondo na comunidade científica internacional e no Vaticano. ;Ninguém confundirá Craig Venter com Deus porque ele construiu uma bactéria de partes mortas;, aposta Caplan, em entrevista por e-mail, referindo-se a um dos coautores da pesquisa. O bioético considera a façanha da equipe de Venter ;muito importante;. ;Ela mostra que a vida não é regida por uma força misteriosa ou um poder inefável. Também reivindica o materialismo e o reducionismo como procedimentos das ciências da vida e encerra séculos de um antigo debate sobre a natureza da vida;, acrescenta.

Para saber o que pensam alguns dos principais ;responsáveis; por todo esse debate, o Correio entrevistou quatro cientistas mundialmente reconhecidos por suas façanhas. Ian Wilmut é responsável pela criação da ovelha clonada Dolly; James Edgar Till descobriu as células-tronco; Steve Myers coordenou a simulação do big bang; e Panayiotis Zavos se esforça para fazer cópias idênticas do homem.

Quatro renomados cientistas dizem ao Correio como encaram a polêmica entre ciência e religião, reacendida na semana passada com o anúncio da primeira célula comandada por genoma artificialO ;pai; de Dolly

Em 1996, ele assombrou o mundo ao criar a ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado e uma célula somática adulta. Agora, o britânico Ian Wilmut trabalha na produção de células-tronco que o permitam estudar doenças neuromotoras

;Os seres humanos têm modificado muitos aspectos de nossas vidas durante séculos e, em muitos casos, isso tem trazido grandes benefícios. Experimentos com animais, por exemplo, foram necessários para desenvolver métodos de imunização que levaram à virtual erradicação de muitas doenças infecciosas que matavam milhares de pessoas a cada ano. Ao criarmos a Dolly, desenvolvemos métodos para introduzir mudanças genéticas precisas em animais, de forma que eles pudessem produzir proteínas ou tecidos usados para tratar humanos. E conseguimos muito mais, porque fizemos com que as pessoas pensassem de forma diferente sobre os mecanismos que controlam o desenvolvimento dos mamíferos. Por causa disso, agora é possível pegar células da pele de uma pessoa e torná-las muito parecidas com as células-tronco embrionárias. Essas células se dividirão muitas vezes, enquanto reterão a habilidade de formar todos os diferentes tecidos de uma pessoa. Isso é extremamente útil em pesquisas e, um dia, pode ajudar a tratar pacientes. O novo experimento anunciado por Craig Venter ; a bactéria com genoma artificial ; não criou uma nova vida; simplesmente criou um componente da bactéria no laboratório. Com o tempo, isso poderá tornar possível a introdução de mudanças genéticas na bactéria, de forma que elas tenham diferentes utilidades. Foi um grande avanço técnico, mas não uma das descobertas mais importantes.;
Ian Wilmut, diretor do Centro para Medicina Regenerativa da University of Edinburgh

Quatro renomados cientistas dizem ao Correio como encaram a polêmica entre ciência e religião, reacendida na semana passada com o anúncio da primeira célula comandada por genoma artificialO ;clonador; de homens

A determinação e a polêmica são suas marcas. No ano passado, ele anunciou a criação de 14 embriões humanos clonados e garantiu ter transferido 11 deles para o útero materno. Com mais de 25 anos de pesquisas na área da genética, o cipriota Panayiotis Michael Zavos refuta qualquer comparação com Deus

;Eu não sei do que a religião tem medo. Os religiosos me acusam de brincar de Deus. No entanto, eles mesmos o fazem 24 horas por dia, sete dias por semana. E eu não sei quem lhes dá poder para fazer isso. O que fazemos é transformar o ser humano e melhorar a qualidade de vida. Já debati com eles na tevê e querem me fazer crer que estão mais perto de Deus do que eu ou você. Eles falam em nome de Deus, querem ser porta-vozes de Deus. Eu tenho uma relação com Deus e não preciso dessas pessoas para mediar esse contato. Eu pego o telefone e Deus fala comigo. Ainda estamos trabalhando com a clonagem, mas tivemos de desacelerar as pesquisas. Conseguimos alguns embriões. O tempo vai dizer, mas acho que a clonagem é um desenvolvimento inevitável. Isso vai acontecer, assim como a vida sintética recentemente anunciada. Isso é algo revolucionário, que vai nos ensinar como a vida surgiu e como podemos nos tornar mais resistentes ao câncer e a outras doenças. Não me oponho ao controle na ciência, mas devemos ser realistas sobre os benefícios que o ser humano terá com esses experimentos. Normas não podem ser impostas por pessoas que disseram ter falado com Deus ontem e que Ele lhes pediu que as criasse.;
Panayiotis Michael Zavos, professor de fisiologia reprodutiva e andrologia na Universidade do Kentucky e fundador do Instituto de Andrologia dos EUA

Quatro renomados cientistas dizem ao Correio como encaram a polêmica entre ciência e religião, reacendida na semana passada com o anúncio da primeira célula comandada por genoma artificialO descobridor das células-tronco

Na década de 1960, ele e o colega Ernest McCulloch injetaram células da medula óssea em ratos. Os dois cientistas perceberam que protuberâncias surgiam no baço dos roedores, na proporção do número de células inoculadas. O canadense James Edgar Till estava pela primeira vez diante das células-tronco

;Se brincamos de Deus? Vou responder com uma citação de Albert Einstein: ;A ciência pode apenas determinar o que é, mas não o que deveria ser;. Uma sociedade democrática tem a responsabilidade de elaborar regulamentos adequados para experimentos científicos, como forma de garantir que as tecnologias sejam seguras para uso. Minha pesquisa, com o Dr. Ernest McCulloch, ocorreu no início da década de 1960. Cerca de 50 anos depois, ainda ficamos surpresos pelo fato de nosso estudo estar recebendo tanta atenção. Os debates éticos têm se concentrado principalmente nas células-tronco embrionárias. Algumas pessoas acreditam que a recente descoberta do Instituto J. Craig Venter é uma das mais importantes já feitas por cientistas. Eu não penso assim. A célula que eles construíram é um importante avanço técnico. Trata-se de uma bactéria normal com um genoma artificial. O citoplasma da célula receptora usado foi natural e não sintético. Não se trata de ;vida artificial;.;
James Edgar Till, biofísico da Universidade de Toronto

Quatro renomados cientistas dizem ao Correio como encaram a polêmica entre ciência e religião, reacendida na semana passada com o anúncio da primeira célula comandada por genoma artificialO simulador do big bang

Partículas subatômicas viajando em direções opostas e quase à velocidade da luz se chocaram em um túnel sob a fronteira da Suíça e da França. Em 30 de março, o físico Steve Myers ajudou a comandar a simulação de como era o Universo apenas um bilionésimo de segundo depois da grande explosão cósmica

;Nós enfrentaremos a extinção se interrompermos a curiosidade e o progresso científico. A ciência deve continuar a evoluir, caso a humanidade queira sobreviver. É importante termos algumas regras ou mesmo controle sobre alguns campos de pesquisa. Os cientistas também devem aceitar a responsabilidade ética e prestar contas de seus atos. Trabalhando no campo da física avançada, não vejo qualquer contradição entre tentar descobrir o que aconteceu pouco depois da criação do universo e a religião. Alguns colegas argumentam que a beleza da física e da matemática associada a nossos estudos poderia ser atribuída a uma força sobrenatural. A questão de clonar animais ou seres humanos é uma questão ética e teológica muito complicada, que não me sinto qualificado para expressar opinião a respeito. Podemos interpretar nossa pesquisa como ;tentando entender como Deus criou o universo;.;
Steve Myers, diretor de aceleradores e tecnologia da Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (Cern) e responsável pelo Grande Colisor de Hádrons (LHC)

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