Ciência e Saúde

A arquitetura da mente

Saiba como os vários tipos de memória processam fatos e conteúdos ao longo da vida. E quais os riscos que corre essa rede de reminiscências de se romper ante o avanço de males como Alzheimer, sífilis, alcoolismo, entre outras doenças e vícios

postado em 22/06/2010 07:00


Renato viaja pelo país inteiro dando aulas de memorização: ler é fundamental para enriquecer os neurotransmissores da memóriaO cérebro humano é o computador mais potente do mundo. Tem uma capacidade de processamento que nenhuma unidade inventada na era das máquinas conseguiria descrever. Uma das funções mais importantes desse supercomputador é a memória. Formada por uma complexa rede de neurônios e neurotransmissores(1), a memória é a capacidade de aquisição, armazenamento e recuperação de informações. Se isso parece pouco, imagine que é graças à memória que você consegue entender onde está e o que está escrito aqui, por exemplo.

Assim, ao ler um ;a;, o cérebro faz uma série de associações para compreender que tipo de ;a; é esse. Primeiro, ele separa o universo em masculino e feminino. Depois, começa a observar o que vem em seguida. Se logo depois do ;a; há um espaço, então trata-se de um ;a; artigo. E por aí vai. ;O cérebro faz uma varredura completa de todas as informações já armazenadas, tudo em milissegundos. Não há nenhuma outra atividade cerebral tão complexa quanto essa;, afirma o professor Ivan Izquierdo, coordenador do Centro de Memória da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS).

Para entender melhor o funcionamento de todas essas tarefas, os cientistas classificaram a memória quanto à duração e ao conteúdo. No primeiro caso, há três tipos de memória: a de trabalho, a de curta duração e a de longa duração. ;A memória de trabalho fica na cabeça apenas pelo tempo necessário para que se entenda o que está sendo dito;, detalha o professor Ivan.

Saiba como os vários tipos de memória processam fatos e conteúdos ao longo da vida. E quais os riscos que corre essa rede de reminiscências de se romper ante o avanço de males como Alzheimer, sífilis, alcoolismo, entre outras doenças e víciosJá a memória de curta duração permanece por algumas horas. A partir de então, o cérebro define o que vai virar memória de longa duração e o que será descartado. ;Não precisamos lembrar agora onde estacionamos o carro ontem. Essa informação foi muito válida ontem, mas hoje não é mais necessária. Pelo contrário, poderia até confundir com o dado sobre onde deixamos o carro hoje;, exemplifica o professor da PUC/RS.

Fazendo cópias
Em relação ao conteúdo, há a memória de procedimentos ; também chamada de memória implícita ; e a memória declarativa ou explícita. A primeira está relacionada a habilidades ou hábitos de cada um, tais como tocar um instrumento ou pentear os cabelos de um jeito específico. Já a memória explícita se refere a coisas que podemos declarar, como o que aconteceu no último capítulo da novela ou a data de aniversário de um amigo.

Mas o cérebro é ainda mais esperto. Além de absorver e guardar todas essas informações, o precavido sistema faz cópias das lembranças para evitar que o material se perca. O professor Ivan Izquierdo explica que não é possível saber quantas cópias de cada acontecimento são guardadas, mas que, seguramente, são mais de 100. ;Coisas mais importantes ; como o nascimento de um filho ou o dia do casamento ; têm mais cópias. Trata-se de uma estratégia de sobrevivência, uma maneira que o corpo tem de preservar as lembranças de lesões, golpes na cabeça e doenças;, afirma o especialista.


Engrenagem da máquina
Os neurotransmissores são substâncias químicas que promovem a comunicação entre os neurônios. Alguns são ativados conforme o estímulo corporal. Por exemplo, quando se praticam atividades físicas, há a liberação de dopamina, serotonima e noradrenalina. Com o passar do tempo, os neurotransmissores acabam sendo liberados em menor quantidade, o que faz com que praticamente todo mundo tenha a memória ;encurtada; depois dos 40 anos.


Para saber mais
Treino para a cabeça


A memória é uma função cerebral que, quanto mais se usa, melhor fica. E a principal forma de exercitá-la é por meio da leitura. Isso porque é no ato de ler que o nosso cérebro mais pratica o processo de varredura e recuperação das informações. O professor Ivan Izquierdo, da PUC do Rio Grande do Sul, afirma que esse treino todo dá às profissões de professor e ator a melhor classificação quando o assunto é o desempenho da memória.

O mnemonista Renato Alves, 38 anos, campeão brasileiro de memorização, confirma. Há 13 anos, antes de se tornar uma das referências nacionais no tema, Renato quase não lia e, quando lia, não conseguia lembrar do conteúdo por muito tempo. Hoje, ele lê mais de 100 livros por ano e ganha a vida ensinando suas técnicas de memorização pelo país. ;Procuro dar soluções práticas às pessoas, fazendo com que elas associem o que precisam lembrar a fatos da vida cotidiana;, diz.

Um exemplo? Criar uma senha de fácil memorização e que não caia na data de nascimento. ;Uma das sugestões é pensar em números relacionados à hora que a pessoa acorda e que vai dormir. Se alguém se levanta às 6h e dorme às 23h30, uma boa senha seria 600230;, exemplifica o especialista. ;O número só ficará gravado se fizer sentido para a memória, é como envolver o cérebro em todo o processo;, diz Renato.


Um mal que apaga o passado
Com toda essa complexidade, imagine o que acontece quando doenças mais sérias começam a afetar a memória. Uma delas é o Alzheimer, mal que ataca o tecido cerebral, fazendo com que as células relacionadas à memória morram(1). Ivan Okamoto, coordenador do Núcleo de Envelhecimento Cerebral da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diz que os cientistas ainda não sabem explicar por que isso acontece. Porém, uma das coisas mais determinantes é a idade: em um grupo de 100 pessoas entre os 60 e os 65 anos, a incidência do Alzheimer é de cerca de 2% a 3%. Se as pessoas tiverem mais de 90 anos, a prevalência da doença chega a 40%.

O Alzheimer afeta, basicamente, dois neurotransmissores da memória: a acetilcolina e o glutamato. O mal começa com a perda da capacidade de registrar novas informações. Depois, o Alzheimer passa a apagar áreas relacionadas à autobiografia da pessoa (memória explícita), atingindo, assim, a linguagem, a capacidade de cálculo e o planejamento. Em casos mais graves, a doença também afeta o comportamento e o humor do paciente. ;É um quadro sem reversão. Trabalhamos com medicamentos que tentam suprir as carências dos neurotransmissores, mas o essencial é tentar estabilizar o mal;, aponta o neurologista Ivan Okamoto.

Em alerta
Além do Alzheimer, há outras doenças que podem apagar as lembranças. ;O indivíduo que é alcoólatra crônico, por exemplo, pode ter um comprometimento sério da memória, associado à deficiência de vitamina B1 (presente em carnes e nos cereais);, explica a neurologista Sônia Brucki, do Departamento de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia. O problema também atinge pessoas que abusam de medicamentos, principalmente calmantes, e aqueles que têm deficit de vitamina B12, encontrada em alimentos de origem animal, como leite e ovos.

Doenças da tireoide e patologias infecciosas, como a sífilis, a Aids e a herpes, são outras que prejudicam o supercomputador humano. Essas, no entanto, podem ser revertidas se diagnosticadas precocemente. ;Todos os quadros que envolvem a deficiência de vitaminas podem ser tratados. O importante é procurar um neurologista assim que houver as primeiras queixas de falta de memória;, recomenda Sônia Brucki.


Pesquisa
A queixa de falta de memória é bastante comum. Estudos mostram que, entre pessoas com mais de 50 anos, o problema atinge até 60% delas. Mas nem toda perda de memória desencadeia o processo de demência ou o Alzheimer. Se o esquecimento não afeta a rotina da pessoa, há demência leve. Caso seja diagnosticada demência moderada, o paciente precisará de um acompanhante para executar as atividades diárias.

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