Ciência e Saúde

Pesquisadores desvendam mudanças genéticas geradas pela síndrome de Kabuki

O nome da doença se deve à aparência dos pacientes, semelhante à maquiagem da tradicional expressão teatral japonesa

Paloma Oliveto
postado em 27/08/2010 07:00
O nome da doença vem do teatro japonês e refere-se à aparência das crianças que nascem com um mal raro, com incidência estimada de um em cada 32 mil nascimentos. O pouco conhecimento sobre a síndrome de Kabuki, descoberta apenas em 1981, é uma preocupação a mais para os pais, que costumam peregrinar por consultórios médicos até conseguirem saber por que seus filhos são tão diferentes dos outros (veja infografia). Uma descoberta publicada na edição on-line da revista especializada Nature Genetics pode, porém, revolucionar o diagnóstico e o tratamento da síndrome, que, no Brasil, tem pelo menos 18 casos relatados.

Um grupo de cientistas da Universidade de Washington usou um novo, rápido e mais barato método de sequenciamento de DNA e descobriu alterações genéticas que estão presentes na maioria dos casos da síndrome de Kabuki. Em vez de mapear todo o genoma humano, a nova abordagem investigou apenas o exoma, uma pequena parte do genoma (entre 1% e 2%) que contém os códigos genéticos proteicos. Dessa maneira, eles conseguiram encontrar o gene que causa a síndrome, chamado MLL2.

O nome da doença se deve à aparência dos pacientes, semelhante à maquiagem da tradicional expressão teatral japonesaSegundo os cientistas, o método pode ser considerado uma segunda geração de tecnologia para identificar genes de doenças raras. ;O potencial de identificar rapidamente as mutações que causam mais de 6 mil doenças raras é um passo importante para pesquisadores que tentam entender a biologia dessas condições e, assim, melhorar as estratégias para o tratamento dos pacientes;, comemorou, em um comunicado divulgado à imprensa, Eric D. Green, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas do Genoma (NHGRI, sigla em inglês), instituição norte-americana que financiou o estudo.

Os pesquisadores da Universidade de Washington sequenciaram os exomas de 10 indivíduos sem parentesco entre eles que nasceram com a síndrome de Kabuki. Partindo do princípio de que a síndrome é causada por alterações em apenas um gene, eles compararam os exomas dos pacientes com os de pessoas saudáveis, em busca de diferenças. Inicialmente, nenhuma foi identificada.

A partir daí, os cientistas levantaram a hipótese de que a síndrome é mais heterogênea geneticamente do que se pensava, e que múltiplos genes poderiam, potencialmente, causar o distúrbio. Novamente, se debruçaram sobre as variantes genéticas compartilhadas pelos 10 pacientes e encontraram diversas peças em um confuso quebra-cabeça. Nove pacientes tinham três genes mutantes, oito exomas apresentavam seis genes variantes e em sete sequenciamentos havia 16 mutações.

;Nos debruçamos sobre os resultados que encontramos, e tentamos identificar no exoma dos pacientes variantes genéticas em comum;, explicou ao Correio o geneticista Jay Shendure, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Washington e um dos autores do estudo. As análises combinadas apontaram para o gene mutante MLL2. A duplicação do gene foi encontrada em dois terços dos casos. Normalmente, o MLL2 codifica uma importante proteína para a regulação da cromatina, uma estrutura que abriga moléculas de DNA de formas a permitir que os cromossomos se encaixem dentro do núcleo da célula. Com a mutação, a cromatina fica inativa e perde sua função.

;Podemos dizer, com certeza, que as alterações no gene MLL2 são a maior causa da síndrome de Kaubi, mas temos de sequenciar os exomas de pacientes que não apresentaram essa variante para encontrar outros genes;, diz Shendure. ;Em um terço dos casos, a mutação não estava presente, apesar de as pessoas examinadas terem nascido com a síndrome;, lembra. Ainda assim, ele comemora a descoberta. ;A partir de agora, conhecemos melhor a síndrome, o que poderá nos levar ao desenvolvimento de terapias potenciais para os pacientes.;

Saber ajuda
Para a publicitária brasileira Silvia Sangaletti Trawny, 36 anos, que mora em Hamburgo, na Alemanha, os avanços na pesquisa podem facilitar o diagnóstico de outras crianças. Mãe de Nina, criança de 1 ano e 10 meses que nasceu com a síndrome, ela diz que, só de saber que a disfunção tem um nome e que é provocada pela duplicação de um gene específico, as famílias já ficam aliviadas. Nos quatro primeiros meses de vida da filha, Silvia passou pelas dificuldades dos pais que não conseguem encontrar uma explicação para as alterações no organismo dos filhos. ;Já percebíamos algum atraso no seu desenvolvimento sem que houvesse nenhuma explicação para isso. Nossa sorte foi detectar anomalias por acidente em um exame de raios X do tórax e no ultrassom de seu intestino;, conta.

De todos os médicos de Nina, o único que conhece a síndrome é o geneticista que a identificou. ;Seus pediatras, neurologista, fisioterapeuta, ninguém conhece. Logo depois, marcamos uma conversa com a equipe de genética do maior hospital de Hamburgo, o que foi totalmente inútil. Àquela altura, depois de pesquisar muito na internet, de ler histórias de outras famílias, estávamos muito mais informados sobre a síndrome que aqueles médicos;, conta. ;Passou a ser nossa função buscar informações sobre a síndrome e ;educar; médicos e terapeutas. Sabemos que também vai ser assim com professores, no futuro. Depois de ler ao menos 15 histórias de outras famílias, chegamos à conclusão de que o diagnóstico da Nina foi o mais rápido e o mais fácil de que ouvimos falar.;

Depoimento - Silvia Sangaletti Trawny

[FOTO2]"Quando a Nina, nasceu houve uma desconfiaça de que algo estava errado, porque ela não conseguia mamar no peito e seus traços sempre foram únicos. Era a única bebê loira da maternidade (em São Paulo), com olhos grandes e muito azuis, muito cabelo, queixo pequeno. Concordamos em chamar um médico geneticista para examiná-la mas ele a considerou com exame morfológico normal. Com 3 meses ela ainda não conseguia suportar o pescoço, o que gerou alguma desconfiança em seu pediatra (além de seu palato alto). Mas o neuro-pediatra que a examinou considerou que era apenas um atraso. Quando ela completou 4 meses nos mudamos para Hamburgo, na Alemanha, cidade do meu marido.

Nina adoeceu com uma virose 2 semanas depois, e teve que ser internada. Logo no pronto-socorro a médica responsável nos perguntou se ela já havia sido avaliada por um geneticista, pois considerou suas orelhas um pouco baixas, e novamente, ouvimos sobre seus traços exóticos. Durante o processo de diagnóstico da virose, descobrimos que seus rins têm o formato distinto e sua clavícula direita é separada em duas partes. O pediatra-chefe nos sugeriu que fosse novamente chamado um geneticista, e novemente concordamos.

A essa altura estava clara a necessidade de um diagnóstico. Tivemos muita sorte, e até hoje somos extremamente agradecidos a esse hospital infantil. O diagnóstico de KS pode ser dificílimo dadas as diferenças entre cada caso. Recebemos a visita de um dos mais importantes geneticistas do norte da Europa, Dr. Meinecke, que a diagnosticou prontamente.

Foram difíceis os 4 primeiros meses de vida da Nina em que já percebíamos algum atraso no seu desenvolvimento sem que houvesse nenhuma explicação para isso. Nossa sorte foi detectar essas anomalias (os rins e a clavícula bipartida) por acidente em um raios X do tórax e no ultrassom de seu intestino. O médico que a diagnosticou foi o único médico que consultamos na Alemanha que conhece a síndrome. Seus pediatras, neurologista, sua fisioterapeuta, ninguém conhece. Logo depois marcamos uma conversa com a equipe de genética do maior hospital de Hamburgo, o que foi totalmente inútil. Àquela altura, depois de pesquisar muito na internet, ler histórias de outras famílias, estávamos muito mais informados sobre a síndrome que aqueles médicos. Passou a ser nossa função buscars informações sobre a síndrome e "educar" médicos, terapeutas, e sabemos que assim vai ser com professores no futuro. Depois de ler ao menos 15 histórias de outras famílias, chegamos à conclusão de que o diagnóstico da Nina foi o mais rápido e o mais fácil de que ouvimos falar.

A Nina é a nossa única filha por enquanto, e ninguém em nenhuma das duas famílias teve diagnóstico de síndrome genética, o que é comum a quase todas famílias. Os casos sabidos de irmãos com a síndrome são apenas os que têm um dos pais também diagnosticados com a síndrome.

A Nina tem 1 hora de fisioterapia por semana, desde os 5 meses, sendo que eu e meu marido damos continuidade à terapia no resto do tempo. E uma hora e meia de terapia de aprendizado, que ajuda crianças com atraso a alcançar o desenvolvimento normal. No início tínhamos uma terapeuta que vinha a nossa casa, mas agora a levamos a um grupo, com 4 crianças na faixa dos 2 anos e duas terapeutas. O grupo é heterogênio, com crianças com outras síndromes como Down, ou algum problema neurológico. Certamente ela vai precisar de fonoterapia. Pra nossa grande surpresa e orgulho ela está acima do esperado para crianças com KS, já fala algumas palavras em português e em alemão.

A Nina tem 2 anos e ainda não sabe andar. Uma criança com atraso no desenvolvimento exige muito mais atenção do pais e de qualquer profissional envolvido. Nossa escolha de médicos deve ser ultra-criteriosa. Na maioria dos casos a saúde é mais delicada. Nossa escolha para sua educação vai ser muito complexa. O que é melhor pra uma criança com dificuldades no aprendizado? Uma escola de integração, ou uma escola especial? Como ajudá-la a vencer o preconceito por ser diferente? Não sabemos se ela vai poder viver sozinha, ter autonomia, se casar. Não sabemos se ela vai poder cursar uma faculdade, ter uma profissão normal. Como a síndrome é "nova", não existem muitos dados sobre adultos, o que gera uma ansiedade imensa nos pais. Tudo para ela tende a ser mais difícil, aprender, se comunicar. Mas o que as pessoas precisam saber é que a alegria que uma criança especial traz é também muito rara. Cada conquista toma uma proporção enorme. As primeiras palavras, a primeira colherada sozinha, não tenho palavras pra descrever minha felicidade. Com 10 meses a Nina bateu palminha pela primeira vez no dia do meu aniversário, enquanto a família cantava parabéns. Esse foi o melhor presente que eu já tive".

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