Ciência e Saúde

Transplante de medula de doador com rara mutação genética "cura" Aids

postado em 16/12/2010 08:00

Já se passaram três anos e meio. Desde o transplante de medula óssea, o norte-americano Timothy Ray Brown, 44 anos, não toma mais o coquetel contra o HIV. O vírus causador da Aids, contraído por volta de 1997, desapareceu de seu organismo. A leucemia mieloide aguda (AML, pela sigla em inglês) também foi debelada. Os alemães Kristina Allers e Gero Hütter, hematologistas do hospital Charité Medical University (em Berlim) e autores da façanha, não escondem o otimismo. ;Nossos resultados fortemente sugerem que a cura da Aids foi alcançada nesse paciente;, escreveram, em artigo publicado pela Blood, a revista científica da Sociedade Americana de Hematologia. Os especialistas mantêm os pés no chão. Sabem que a técnica utilizada ainda é arriscada demais para se tornar um procedimento clínico-padrão.

Para combater a leucemia de Brown, eles ;zeraram; o sistema imunológico do paciente, por meio de altas doses de quimioterapia e radioterapia. Em março de 2007, ele foi submetido ao primeiro transplante de medula, quando recebeu novas células-tronco. Foi então que abandonou os antirretrovirais. A leucemia voltou e, em março de 2008, Brown tornou a receber as células do mesmo doador, portador da mutação Delta 32 homozigosidade. Kristina e Hütter queriam saber como a Aids reagiria ao processo. Ficaram surpresos. Com a interrupção do tratamento contra o HIV, em vez de o vírus se replicar no sangue, ele desapareceu.

Gero Hütter, um dos autores da pesquisa: A primeira contagem da carga viral, por meio do teste DNA-PCR, indicou sorologia negativa 68 dias após o segundo transplante. Os exames foram repetidos no 285; dia. Traços do HIV-1 já não eram detectados no sangue periférico, na medula óssea e na mucosa retal. ;Essa técnica se limita a pacientes com indicação de transplante de células-tronco, independentemente da infecção pelo HIV;, afirmou ontem Hütter, em entrevista ao Correio por e-mail (leia ao lado).

No resumo do estudo, intitulado Evidência da cura da infecção pelo HIV por meio do transplante de células-tronco CCR5 Delta 32, os estudiosos explicam que a entrada do vírus nos linfócitos ocorre por meio dos receptores celulares CCR5 e CXCR4. ;Nós já havíamos relatado o caso de um paciente soropositivo no qual a replicação viral permaneceu ausente, apesar da descontinuação da terapia antirretroviral, após o transplante de células-tronco CCR5 Delta 32. No atual estudo, demonstramos a reconstituição bem-sucedida de linfócitos CD4 a um nível sistêmico, bem como no sistema imunológico da mucosa do intestino, enquanto o paciente permanece sem qualquer sinal de infecção pelo HIV;, escreveram.

;Essa pesquisa é uma importante prova de conceito, por demonstrar que nossa compreensão sobre a biologia do HIV está correta e que a cura da Aids é possível;, comemora o infectologista Michael Saag, diretor do Centro para Pesquisa da Aids da Universidade do Alabama em Birmingham, nos Estados Unidos. Por e-mail, ele explicou que o combate à leucemia de Brown exigia a morte de todas as células de seu sistema imunológico, inclusive aquelas infectadas pelo HIV. ;As células do doador, cuja rara mutação o tornava resistente ao vírus, não poderiam ser contaminadas. À medida que as células do doador assumiram o controle do sistema imunológico do paciente, elas ficaram livres da infecção pelo HIV;, afirmou Saag.

Contradições
Ainda que o único caso de ;cura; comprovada da Aids seja um motivo para a ciência avançar em suas pesquisas, os especialistas alternam ceticismo e otimismo. De acordo com Robert C. Gallo, infectologista norte-americano que ajudou a isolar o HIV em 1984, a técnica ainda é cara e perigosa demais. ;Precisamos de uma solução barata, que possa ser implementada na África e nos países em desenvolvimento. Isso pode ser feito por meio de uma vacina preventiva;, sugeriu. ;Nosso Instituto de Virologia Humana, da Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland, possui uma sólida candidata à vacina, com a qual esperamos iniciar os testes clínicos em breve;, anunciou.

Saag, por sua vez, defende que apenas pacientes com leucemia ou com algum tipo não tratável de câncer se submetam a esse transplante. No entanto, ele admite que ao estudo de Kristina e Hütter encoraja os cientistas a buscarem intervenções menos perigosas e capazes de levar a uma cura efetiva e disponível para todos os 33 milhões de portadores do vírus da Aids no mundo. ;Com os sucessos extraordinários dos atuais tratamentos contra o HIV, que permitiram aos pacientes ter uma expectativa da próxima à da normalidade, tomar o risco de um transplante de medula óssea é algo inaceitável;, comenta o especialista de Birmingham.

Defeito benéfico
A mutação genética hereditária CCR5 Delta 32 é raríssima: está presente em menos de 1% das pessoas de cor branca no norte e no oeste da Europa. A ;anomalia; provoca a falta de certas células que atuam como ;estações de acoplagem; do vírus da Aids. O HIV utiliza a proteína CCR5 para entrar nas células-alvo. Sem tais células, o micro-organismo não consegue infectar o sistema imunológico. Ou seja, as pessoas com essa mutação, não desenvolvem a Aids, mesmo entrando em contato com o vírus.

DEPOIMENTO
Vítimas do preconceito
Descobri que sou soropositiva em março de 1997. Tomo os antirretrovirais desde essa época. Sou uma idosa de 62 anos, vivendo com o HIV. A doença não me apresenta limitações. Os seres humanos, sim, com seu preconceito. Hoje, o que mais mata as pessoas que vivem com o HIV, afora o preconceito e a exclusão social, são os efeitos colaterais graves dos medicamentos. Houve diminuição no número de mortes por Aids, mas um imenso acréscimo de mortes de pessoas vivendo com HIV por problemas vasculares, cardiológicos e tumores. Isso não está sendo computado nos casos de morbimortalidade decorrentes da infecção pelo HIV, o que causa uma falsa ilusão de que a epidemia está sob controle. Resta-me gritar, como ativista que sou nesta luta contra a Aids e contra o preconceito: Cura já!

Sinceramente, não creio em uma cura ;próxima;. Os estudos com as células-tronco têm trazido muitos avanços na medicina. Porém, no caso do HIV, há que se levar em conta as inúmeras mutações genéticas do vírus e o que isso acarretaria no estudo feito até aqui. Por outro lado, fiquei surpresa com a explicação da situação de cura desse rapaz, quando referiram que as células-tronco que ele recebeu não produziam a proteína CCR5. A minha surpresa foi em decorrência do estudo a que se submeteu meu marido, Carlos Aleixo. Ele convivia comigo com carga viral altíssima (sem sabermos que eu tinha o HIV) e não havia se infectado. A conclusão da pesquisa foi justamente essa. As células de Carlos não tinham a proteína CCR5. Essa substância seria como uma ;cola;, com a qual o vírus se prenderia às nossas células de defesa. A ausência dessa proteína nos organismos não evitaria que o vírus entrasse na corrente sanguínea, mas impediria sua sobrevivência. Não há dúvidas de que toda a humanidade almeja a cura da Aids e, pela primeira vez, a ciência sinaliza que isso ocorreu. Já temos um caso de cura nas mãos.
Beatriz Pacheco, advogada, 62 anos, moradora de Porto Alegre. É soropositiva desde 1997

ENTREVISTA - GERO H;TTER
Gero Hütter, um dos autores da pesquisa: Em novembro de 2008, o hematologista alemão Gero Hütter parecia assustado com o fato de sua façanha ter vazado na mídia mundial antes mesmo de uma prestigiosa revista norte-americana revisar seu feito. Na ocasião, o cientista do Hospital Charité Medical University, em Berlim, se recusou a conceder uma entrevista, temendo que a publicação da pesquisa não fosse aprovada. Ontem, Hütter voltou a falar com o Correio. O especialista que conseguiu eliminar o HIV em um paciente que tinha o vírus da Aids havia mais de uma década e estava com leucemia mieloide admitiu o otimismo à reportagem, em entrevista por e-mail. ;Ele nunca mais sofrerá de sua infecção pelo HIV nem precisará tomar medicamentos no futuro;, afirmou Hütter, responsável pelo transplante de medula óssea e células-tronco no paciente soropositivo ;curado;.

Os senhores realmente conseguiram a cura da Aids nesse paciente submetido à com células-tronco?
O paciente nunca mais sofrerá de sua infecção pelo HIV. Nem precisará tomar medicamentos no futuro.

De que modo o transplante das células-tronco de um doador com uma mutação que o tornava resistente ao HIV ajudou a ;limpar; o sistema imunológico do paciente com Aids?

Esse ponto não está bem claro. Provavelmente, o que ocorreu foi uma simples substituição do velho sistema imunológico pelas células novas e resistentes ao HIV, pertencentes ao doador. Mas as células de defesa CD4 (linfócitos), com longa duração de infecção pelo HIV, podem ter sido eliminadas por algo que conhecemos como efeito enxerto versus hospedeiro.

Esse estudo pode ser transformado em aplicações clínicas e ajudar na cura da Aids?

Esse caso tem apoiado, e algumas vezes iniciado, investigações intensivas na tradução do conhecimento do transplante CCR5-Delta 32 em uma forma mais viável de tratamento. Eu acredito que o potencial de qualquer tipo de terapia genética ainda está em desenvolvimento. No entanto, o principal problema é que as técnicas atuais não são capazes de eliminar de CCR5 em todas as células-tronco para transplante.

Alguns especialistas afirmam que essa técnica é muito perigosa, porque o sistema imunológico precisa ser zerado. Quais são os riscos dessa técnica?
Essa técnica se limita a pacientes com indicação de transplante de células-tronco, à parte da infecção pelo HIV. Em pacientes com estágio final da infecção e com sintomas da Aids, seria preciso discutir se eles seriam aptos à técnica baseada em células-tronco.

Quantos meses foram necessários até que os senhores percebessem que o paciente não tinha mais Aids?

Nós o analisamos, de forma contínua, desde o primeiro dia do transplante. No geral, pacientes que param de tomar a medicação contra o HIV têm uma religação do HIV no RNA poucos dias depois. Então, ficamos muito otimistas após o transplante, porque nosso paciente não apresentou esse efeito. (RC)

Em entrevista ao Correio, por e-mail, o infectologista Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, falou sobre o primeiro caso de "cura da Aids" por meio do transplante de células-tronco.

Cientistas alemães relataram ter curado um homem com Aids ao zerar seu sistema imunológico e realizar um transplante de células-tronco. Como o senhor vê esse avanço?
Esse relato é uma encorajadora "prova de conceito", que fornece esperança de que algumas das outras terapias genéticas em desenvolvimento para a cura da infecção pelo HIV possam funcionar e de que as estratégias para uma cura podem ser possíveis.

De que modo o transplante de células-tronco do paciente com rara mutação ajudou a limpar o sistema imunológico, tornando-o livre do HIV?
Antes do transplante, o paciente se submeteu a uma quimioterapia intensiva para destruir seu sistema imunológico original, para que as células-tronco transplantas pudessem substituí-lo. Essas células transplantadas tinham uma mutação que levou à produção de células de defesa T que não possuíam o receptor CCR5, um dos dois receptores-chave que o HIV usa para se agarrar às células T e invadi-las. Na ausência do receptor CCR5, a maior parte das formas de HIV não poderia infectar células e nem se replicar no corpo do paciente. Algumas formas de HIV usam um diferente receptor chamado CXCR4 para infectar as células T. O HIV do paciente teoricamente poderia ter continuado a replicar, mesmo na ausência de células T CCR5-positivas. Os autores do estudo na revista científica Blood descobriram que isso não ocorreu e viram que o sistema imunológico reconstituído do paciente continha células CXCR4-positivas que eram vulneráveis à infecção pelo HIV no laboratório.

Esse processo poderia ser transformado em aplicação clínica?
Esse método particular de curar uma pessoa da infecção pelo HIV é extremamente impraticável. Em primeiro lugar, é raro encontrar células-tronco de doadores que não apenas sejam compatíveis com o paciente, mas também que contenham a mutação das células T CCR5-negativas. Esse defeito genético existe em apenas 1% da população caucasiana e em 0% da população negra. Em segundo lugar, o tratamento é muito arriscado, caro, doloroso e complicado. O receptor (paciente) deve se submeter a uma ampla quimioterapia para eliminar as células de seu sistema imunológico, antes de o transplante ocorrer. Apesar de o paciente não precisar mais de antirretrovirais depois do transplante, ele deve tomar drogas imunossupressoras para prevenir uma rejeição das células transplantadas.

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