Ciência e Saúde

Processos de beatificação incluem análises científicas minuciosas

Paloma Oliveto
postado em 01/05/2011 06:30
Considerada por muitos como o avesso da fé religiosa, surpreendentemente é a ciência que dá a última palavra no processo de canonização. Longe de ser uma fábrica de santos, o Vaticano depende do testemunho de médicos para reconhecer o poder de cura atribuído a pessoas como o papa João Paulo II. Caso o cientista se recuse a relatar os casos e a afirmar que há explicações racionais para a recuperação de um doente, o processo é encerrado, ainda que a pessoa que se beneficiou do suposto milagre jure sobre a Bíblia ter sido curada graças a Deus. Depois de escrever um parecer médico que resultou na canonização da primeira santa canadense, a hematologista e historiadora Jacalyn Duffin, professora da Universidade de Queens, em Ontário, resolveu estudar o papel da ciência no reconhecimento de milagres. Criada em um ambiente anglicano, mas ateia convicta, Duffin fez uma extensa pesquisa nos Arquivos Secretos do Vaticano que resultou no artigo When the doctor was surprised or how to diagnose a miracle (Quando o médico se surpreendeu ou como diagnosticar um milagre), publicado no Boletim de História da Medicina da Universidade de Oxford. Ela se debruçou sobre 600 milagres relativos a 333 processos de canonização entre 1600 e 2000 e descobriu que 95% dos casos se referiam a curas de doenças. Reunião da Congregação para as Causas dos Santos: para não estimular sensacionalismos, a Igreja se recusa a avaliar casos de pessoas que rejeitaram tratamento médicoA pesquisa de Duffin, que continua ateia e publicou há dois anos um livro sobre os processos estudados, revela detalhadamente o longo caminho de investigação científica até que uma pessoa seja reconhecida santa pela Igreja. %u201CO médico não precisa acreditar em milagre, o médico não precisa ser católico nem mesmo cristão. Mas ele deve obedecer a dois critérios. O primeiro é declarar o prognóstico sem esperança de cura, mesmo com as melhores tentativas. O segundo, e talvez mais importante, é reconhecer que o fato de a pessoa ter sido curada foi uma surpresa para ele. Enfim, o Vaticano define e diagnostica um milagre quando a medicina é surpreendida%u201D, escreveu Duffin, no artigo. De acordo com a hematologista e historiadora, a Igreja não cria o santo, apenas o reconhece. %u201CO papa proclama um santo com a simples palavra discernimus, que quer dizer %u2018nós reconhecemos isso%u2019%u201D, relata. Para que essa palavra latina seja dita, o caso passa por diversas etapas, sendo que o testemunho científico é essencial em cada uma delas. Em 1588, o Vaticano, muito criticado pelo protestantismo por canonizar pessoas às centenas, resolveu ser mais cético e criou a Congregação dos Ritos, para presidir o processo de canonização. Em 1730, houve a inclusão de regras instituídas por Prospero Lambertini, que mais tarde seria o papa Bento XIV. Entre as novas normas, estava a participação de professores, médicos e cirurgiões nas inquirições. Com poucas modificações, as regras de quase três séculos ainda são a base da canonização. Para formalizar essas rotinas, a Igreja instituiu um colégio de médicos, o Consulta Medica, em 1949, que fornece consultoria à congregação. Geralmente romanos, esses médicos são remunerados para prestar os esclarecimentos técnicos ao longo dos processos. Até que a canonização seja reconhecida, é preciso seguir várias etapas, que começam com a abertura dos trabalhos de investigação na arquidiocese onde o milagre teria ocorrido. Se o estudo da vida pregressa do candidato a santo confirmar um histórico de virtudes, o Vaticano dá seguimento ao processo. %u201CNessa fase, um exame minucioso dos milagres atribuídos é essencial para a beatificação, a etapa anterior à canonização%u201D, explica ao Correio o frei Daniel Maher, do Centro de Promoção da Legião de Santos da América do Norte. No caso testemunhado por Jacalyn Duffin, a primeira inquirição ocorreu dois anos depois de a médica ter escrito um parecer sobre o caso que levaria à canonização da santa canadense Marie-Marguerite d%u2019Youville. Foram seis horas de perguntas feitas por uma comissão de padres e bispos. %u201CEles nunca me pediram para dizer que aquilo era um milagre. Eles queriam saber se eu tinha uma explicação científica para o fato de a paciente continuar viva. Percebi que eles não queriam que eu endossasse suas crenças. Eles não se importavam se eu acreditava ou não, eles só queriam saber da ciência%u201D, afirmou a médica, em entrevista ao jornal canadense National Post. Leucemia curada Para entender o que despertou em Jacalyn o interesse pelo processo científico da canonização, é preciso retroceder três décadas no tempo. Nos anos 1970, ela trabalhava em um laboratório de hematologia e recebeu amostras de células de uma paciente, sobre quem não teve qualquer outra informação. O exame das lâminas mostrou que se tratava de uma pessoa com leucemia aguda mieloblástica, a forma mais agressiva da doença. As amostras eram de um período de 18 meses e mostravam que a paciente, no início, estava muito mal, mas havia passado por um tratamento que amenizou o quadro. Depois, houve uma piora e novamente uma remissão (ausência de sinais da doença) %u2014 algo muito difícil de ocorrer, segundo Jacalyn. As últimas lâminas indicaram que houve uma piora quase instantânea. %u201CMas as próximas mostraram mais e mais remissões%u201D, diz a médica. Acreditando que a dona daquelas células estava morta e que sua perícia serviria para alguma prova judicial, a hematologista escreveu para a médica Jeanne Drouin, que cuidava da paciente, dizendo que não tinha uma explicação para a súbita piora seguida pela recuperação mostrada pelos exames. %u201CEssa perícia é para algum processo legal? Ou isso é um milagre?%u201D, perguntou. %u201CÉ um milagre%u201D, respondeu a colega, cuja paciente foi curada e, até hoje, está viva. A mulher, que na época era criança, passou por um tratamento quimioterápico agressivo, mas atribuiu sua cura a Marie-Marguerite d%u2019Youville, uma jovem freira morta dois séculos antes. Todas as informações científicas relatadas por Jacalyn foram contestadas pelo Promotor da Fé, título de um integrante da Congregação dos Ritos, cujo objetivo é tentar encontrar falhas durante o processo, sejam manchas na biografia dos candidatos a santos sejam imperfeições nos relatos científicos. Coloquialmente chamado de advogado do diabo, esse foi um papel já desempenhado pelo cardeal Joseph Ratzinger, hoje papa Bento XVI. Um detalhe que surpreendeu Jacalyn ao longo de suas pesquisas é que a Igreja se recusa a investigar milagres operados em pessoas que abandonaram o tratamento médico para confiar apenas na fé. O Vaticano somente reconhece milagres quando todos os recursos tecnológicos foram aplicados. Dessa forma, além de desencorajar sensacionalismos, diz Jacalyn, a Igreja ganha o respaldo científico para a canonização. Em média, os processos analisados por ela traziam o testemunho de dois a sete médicos, cada um. Ateus e judeus Durante os interrogatórios, os cientistas se comportam das mais variadas maneiras. Alguns se recusam a comentar os casos %u2014 então, o processo é arquivado. Alguns mostram-se extremamente vaidosos de participar do testemunho de um milagre, enquanto outros, conta Jacalyn, respondem com impaciência e irritação. Na pesquisa realizada nos Arquivos Secretos do Vaticano, ela encontrou relatos feitos por médicos católicos, protestantes, judeus e ateus. Um arquivo relativo à canonização de um líbio sugere que há testemunhos de médicos muçulmanos, mas, como o processo ainda está em andamento, a pesquisadora não teve acesso aos detalhes. Entre os judeus que ajudaram a canonização está Ronald Kleinman, um renomado pediatra de Harvard, que aceitou, em 1997, testemunhar sobre o caso de uma criança de 2 anos que havia ingerido acidentalmente 16 pílulas de tylenol. Em 1986, ela deu entrada ao hospital onde Kleinman trabalhava, com falência múltipla de órgãos e uma grave infecção. O médico disse que nunca fala aos pais que não há esperança, mas sabia que não havia chance de sobrevivência. Quatro dias depois, a menininha voltou para casa. Embora a família não quisesse fazer alarde sobre o caso, um jornal local descobriu a história, que chamou a atenção de freiras carmelitas que lutavam pela canonização de santa Edith Stein, para quem os pais da criança pediram intercessão. Cinco anos depois, ele recebeu um convite da Arquidiocese de Boston para dar seu testemunho. Durante cinco horas, Kleinman explicou o caso, confirmando que não havia razões médicas para a cura da menina. Passados mais seis anos, ele foi ao Vaticano e, em um relato de seis horas, forneceu as mesmas informações. %u201CAvisei que sou judeu e que não acredito em milagres, no sentido católico. Não acredito em santos nem em intercessão. Mas também expliquei que há coisas que estão acima de qualquer explicação científica%u201D, disse o médico, à época. Assim como a hematologista, ele ficou impressionado com o rigor científico do processo. %u201CFoi uma das maiores surpresas da minha vida%u201D, contou. %u201CQuando digo que sou ateia, as pessoas ficam indignadas%u201D, comenta ao Correio Jacalyn, por e-mail. %u201CO que posso dizer é que o processo de canonização é realmente fascinante. E nós não precisamos dizer, como médicos, se um milagre existe ou não. Apenas somos perguntados se existe uma explicação científica para os casos.%u201D Para o professor de história da medicina da Universidade de Yale John Harley Warner, as revelações feitas pela pesquisa de Jacalyn mudam a percepção da ciência sobre o processo de canonização. %u201COs arquivos do Vaticano revelam a importância e o rigor da avaliação médica no julgamento dos milagres durante os últimos 400 anos%u201D, diz à reportagem. %u201CEsses registros oferecem novas percepções surpreendentes sobre a interação entre a religião e a medicina, evidenciando o grande poder cultural que a medicina exerce no mundo moderno%u201D, avalia. Milagre de Deus Para a Igreja Católica, não é o santo que promove a cura. Ele, segundo a fé religiosa, tem o poder de interceder perante a Deus para operar milagres, como devolver a saúde a pessoas desenganadas pela medicina. O processo de canonização é realmente fascinante. E nós não precisamos dizer, como médicos, se um milagre existe ou não. Apenas somos perguntados se existe uma explicação científica para os casos%u201D Jacalyn Duffin, hematologista e historiadora

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