Diversão e Arte

Brasiliense Roger Mello denuncia poeticamente os males do trabalho infantil em Carvoeirinhos

postado em 26/10/2009 08:37

De lá do alto da telha de barro, o marimbondo admira a casa de um menino diferente. Queria entender por que aquele lar abraça o fogo. Sob as labaredas, o garoto coloca lenha para virar carvão. Depois, senta e conversa com outra criança que solta fumaça pelo nariz. Estão no centro de um forno. Fazendo o quê? O marimbondo instiga-se e, aos poucos, sobrevoa o cenário vergonhoso do trabalho infantil que macula o Brasil, país que aspira ser a nação do futuro.

; Hoje cedo pus minha cara pra fora da casa, o menino já estava quase terminando de barrear um forno aceso. Olha só, ele barreia uns dois fornos por dia. A mão escolhe um tijolo para barrear bem as bordas, narra o nosso curioso inseto.

Roger se comunica nesse jogo de escrever, que conduz os olhos do leitorCarregada de poética, a história acima saiu das mãos do brasiliense Roger Mello, premiado autor e ilustrador, que acaba de ser indicado à edição 2010 do prêmio Hans Christian Andersen, o equivalente ao Nobel de literatura infanto-juvenil. Está impressa no ótimo livro Carvoeirinhos (Companhia das Letrinhas), um mergulho tocante numa temática espinhosa. Não é a primeira vez que Roger Mello dialoga com esse universo. Em 2001, ele lançou Meninos do mangue, inspirado na realidade dos meninos catadores de caranguejos.

; Certa vez encontrei o poema de Manuel Bandeira Meninos carvoeiros, de 1921, e comecei a lembrar que, na minha infância, quando viajávamos de carro, saindo de Brasília, víamos umas casas redondas que soltavam fumaça. Meu pai dizia: Não são casas. São fornos de fazer carvão. Nessa outra paisagem, os meninos brincavam com o barro e faziam caminhões de madeira, assim surgiu Carvoeirinhos.

[SAIBAMAIS]Para compor essa obra, Roger Mello mergulhou nas lembranças do passado. Percebeu que o cenário, com os fornos vindos à mente nessas viagens, criava espécie de conto de fadas às avessas. Como ele explica, era uma paisagem quase de cabeça para baixo.

; Pesquisei muito e há milhares de dados alarmantes por todos os lados. A fumaça das queimadas cobre o céu de muitas cidades das regiões Norte e Centro-Oeste. Importantíssimo também foi assistir ao excelente documentário de Marcos Prado: Os carvoeiros.

Como o marimbondo que vê o mundo de cabeça pra baixo, Roger Mello narra Carvoeirinhos quase ao pé do ouvido do leitor, sem agredi-lo jamais. Mostra, do ponto de vista desse marimbondo, essa tragédia motivada pelo desenfreado sistema econômico, que desemboca na milionária classe dos usineiros.

; A verdade é que o carvão vegetal alimenta a produção de um dos maiores produtos de exportação nacional: o aço. Estive em uma carvoaria no Pará, estado que, junto a Mato Grosso, concentra a maior parte das carvoarias do Brasil. Em geral, os carvoeiros não falam muito, pois o trabalho infantil é proibido. Mas que ainda existe, existe.

A sensibilidade do autor está na harmônica combinação entre traço e palavra. Ganhador de oito prêmios Jabuti, Roger se comunica nesse jogo, que conduz os olhos do leitor. O processo de criação é cuidadoso. Leva até quatro anos para finalizar um projeto. Em cada livro, é de um jeito. Em Carvoeirinhos, como vimos, a história chegou antes. Roger conta que, apesar de as ilustrações não estarem logo prontas, ele começou a desenhar o marimbondo.

; Precisei entender o desenho das asas desse inseto, desenhar o barulho dessas asas. O marimbondo é o narrador da história, aliás, construindo seu ninho redondo com barro molhado como são construídos os fornos que os meninos barreiam. Só que de cabeça pra baixo.


Cinco perguntas // Roger Mello

O que o levou ao tema de Carvoeirinhos?
Em 2001, lancei o livro Meninos do Mangue, sobre os catadores de caranguejo. O trabalho infantil já estava presente nesse livro, mas a ideia era escrever sobre a infância num ambiente (inusitado para muitas pessoas) onde as idas e vindas da maré são mais importantes do que a diferença entre a noite e o dia. Onde o chão é feito de lama que se inunda, e as árvores espalham raízes pelos ares. Ali, o primeiro brinquedo dos meninos é mesmo o caranguejo. A epígrafe do livro é do sociólogo brasileiro Josué de Castro, que escreveu um livro fundamental: Geografia da fome.

Qual o leitor que você busca quando está criando?
O primeiro leitor sou eu mesmo, meio louco né? Gosto de não saber aonde a história vai me levar. Por mais engraçado que pareça, a maneira de se respeitar a criatividade do leitor, é esquecer que ele vai ler. É fazer como se fosse só pra gente, ou pra uma criança que a gente conhece muito.

O seu trabalho tem uma repercussão tanto no tema quanto na criação. Foi importante ser indicado ao Andersen?
A Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) é a representante da International Bord on Books for Young People (IBBY). Quando me falaram da indicação para o Hans Christian Andersen de Ilustração me senti premiado desde já. Afinal, a FNLIJ seleciona o que há de melhor em nossa produção editorial há 40 anos! E já indicaram grandes artistas, como Rui de Oliveira, Nelson Cruz e Marilda Castanha!

Quais são próximos projetos?

Estou desenhando uma coleção chamada Três tigres. São três livros de imagens em que um tigre grita o seu silêncio. O tigre é um dos animais mais silenciosos, apesar de ser um dos maiores predadores. As almofadas das patas do tigre disfarçam sua aproximação. O primeiro tigre já está rodando na gráfica, seu nome vai ser Selvagem. Tem também um livro chamado Contradança, que é um diálogo entre uma bailarina e seu amigo imaginário.

Como é sua relação hoje com Brasília?
Moro no Rio, mas vou sempre a Brasília. Preciso da paisagem aberta do Planalto pra me expandir, e vejo, com vigor, a força da cidade como um polo cosmopolita de criação. Não só como a própria força questionadora, mas como uma interface mundial com o que a arte tem de mais novo.

CARVOEIRINHOS

Livro de Roger Mello. Companhia das Letrinhas, R$ 45

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