Diversão e Arte

Histórias curtas, grandes estragos

Livro de Thomas Bernhard tem narrativas compactas, mas com intenso potencial de produzir reflexão acerca das limitações humanas

postado em 31/10/2009 11:40
Existe esse sujeito que sabe imitar vozes. Ele se apresenta na Sociedade Cirúrgica da Áustria e, a convite de alguns membros, faz espetáculo diferente em outra ocasião, durante o qual imita vozes distintas daquelas primeiramente simuladas. Ao final do espetáculo, porém, alguém sugere que ele imite a própria voz: "Ele disse que aquilo não sabia fazer". Histórias curtas como essa (embora ela não seja tão curta no original) fazem parte do livro novo de Thomas Bernhard, escritor considerado austríaco, embora tenha nascido na Holanda. O livro se chama exatamente O imitador de vozes e na aparência destoa do restante do trabalho de Bernhard, geralmente caudaloso. Em Extinção, por exemplo, o que havia no romance era apenas um único e longo parágrafo. Em O imitador de vozes, a opção é radicalmente diferente. As narrativas, historietas ou outra denominação que se queira dar, são rigorosamente curtas, algumas cabem em menos de uma página. O que há em comum em todas é a vontade de desconcertar o leitor com relatos de crimes, comportamentos estranhos, bizarrices de toda ordem. Um sujeito de um metro e noventa, tipógrafo, funcionário padrão há trinta anos, mata um escolar. No tribunal alega o motivo: tinha medo da vítima. Assim, sem maiores explicações. Ou um juiz de Salzburgo resolve, depois de condenar um exportador de carne a doze anos de prisão e pagamento de multa, instituir um exemplo. Saca um revólver de debaixo da toga e atira contra a própria têmpora para morrer na hora. Ou, ainda: um sujeito vai com um amigo, teólogo, a um zoológico, embora não goste desse tipo de lugar. O amigo dá toda a comida aos macacos e então, súbito, os macacos recolhem a comida lançada e a oferecem de volta. Os dois amigos dão meia-volta e saem dali o mais rápido possível. A dimensão terrível dessas histórias todas está, sobretudo, no fato de que talvez sejam ficção. Mas daquele tipo de ficção que serve apenas para disfarçar o mecanismo de tecer todo tipo de críticas, o que Bernhard termina por fazer. Numa das histórias, por exemplo, chamada "Em Roma", ele narra a morte de uma poeta, "a mais inteligente e importante que nosso país produziu neste século". Depois de passar uma vida inteira em fuga, sem conseguir retornar a Áustria, o narrador diz que a poeta "sempre viu nos seres humanos o que são na realidade: a massa obtusa, inane, inescrupulosa, com a qual só resta de fato romper". Difícil saber até que ponto a opinião da poeta, cujo nome sequer aparece, é na verdade a opinião do próprio Bernhard quanto a toda a humanidade. Embora as histórias se multipliquem, em repetição ao mesmo tempo ostensiva e inquietante, há talvez um pormenor que pode desagradar o leitor. Exatamente a ausência de caracterização mais detalhada dos personagens. As histórias são inquietantes, certo, mas daqui a pouco você começa a se perguntar, e daí? Qual o sentido dessa coisa toda, se afinal ela está descaracterizada, se os nomes de cidades ou pessoas tanto poderiam ser estes como quaisquer outros? Bernhard parece ter se detido a encontrar a essência da história estranha, motivo pelo qual abriu mão de tentar o truque mais óbvio para um escritor, ou seja, caracterizar excessivamente as personagens. Pelo contrário, ele evita tudo, fica somente com o núcleo concentrado. Uma das mais sintomáticas narrativas é aquela intitulada "Gênio", em que um artista que opta pelo suicídio depois de concluir uma obra importante, toma o cuidado de primeiro colocar fogo na obra, para evitar que Viena se beneficie mais uma vez de um gênio somente depois de morto. Há também a história do tio de uma princesa que se mata no dia do quinquagésimo primeiro aniversário, por acreditar que quem passa dos 50 anos demonstra "deficiência ou da mente do caráter". Várias das histórias comprovam a opção clara do escritor pelo lado incontrolável, obscuro e estranho do projeto humano. Um bombeiro, estimulado pelo que disse ser uma "súbita compulsão interior", puxa a rede de salvamento estendida abaixo do suicida, e, portanto, os colegas são forçados a também deixar o suicida matar-se. Ou um pai de família, dotado de "senso familiar extraordinário", um belo dia mata quatro dos seus seis filhos, para depois justificar-se no tribunal que os filhos "haviam se tornado demais para ele". Ou o funcionário do correio que assassina uma mulher grávida e alega que o fez "tão cuidadosamente quanto possível". Por repetir sempre as respostas com a palavra cuidadosamente, o processo foi arquivado. É um mundo estranhamente tecido, mas nem por isso menos verdadeiro do que todos os absurdos com que é possível se deparar todos os dias, basta abrir os jornais e checar. Talvez o principal dos absurdos seja exatamente esse (que o livro de Bernhard por contraste pretende deixar exposto), o de achar que tudo o que de absurdo se passa em volta é bastante natural. Trecho Receita Na semana passada, morreram cento e oitenta pessoas na cidade de Linz, todas elas acometidas da gripe que neste momento grassa na cidade, mas não morreram da tal gripe, e sim em consequência de uma receita mal compreendida por um farmacêutico recém-contratado. É provável que o farmacêutico tenha de responder à justiça por homicídio culposo, possivelmente, como o jornal noticia, ainda antes do Natal. O IMITADOR DE VOZES De Thomas Bernhard. Companhia das Letras. 160 páginas, R$ 39. O jornalista Paulo Paniago é doutor em comunicação pela Universidade de Brasília

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