Diversão e Arte

Vale tudo?

No livro A grande feira, jornalista investiga os impasses da arte contemporânea e critica o sistema baseado no coleguismo e nos interesses do mercado

Nahima Maciel
postado em 28/12/2009 07:00

No livro A grande feira, jornalista investiga os impasses da arte contemporânea e critica o sistema baseado no coleguismo e nos interesses do mercadoO jornalista Luciano Trigo começou a escrever sobre artes plásticas em 2007. Nunca hesitou em contestar a arte contemporânea com que se deparava nas galerias. Levava para o papel suas dúvidas sobre a legitimidade de trabalhos que considerava vazios de reflexão ou repetições de modelos que foram vanguarda nos anos 1950, mas já não faziam sentido hoje. Na época, ficou surpreso com as reações aos seus textos. "Vi que tinha tocado num nervo sensível e resolvi aprofundar minha investigação." Assim nasceu A grande feira ; Uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea. "Não é um livro de crítica de arte, mas uma investigação jornalística-sociológica sobre os impasses da arte hoje e sobre a dinâmica do sistema da arte. Fui motivado por uma inquietação diante da produção artística contemporânea, que me parecia estar à deriva."

Trigo sustenta que há todo um sistema conivente baseado no coleguismo e interesses econômicos montado para legitimar uma produção artística que dificilmente passaria pelo crivo da crítica se esta fosse independente. O público, segundo ele, não interessa a esse sistema, por isso suas reações à arte contemporânea são encaradas como fruto de desconhecimento e ignoradas.

O autor conta com três pensadores para orientar sua investigação. Do alemão Hans Belting e do americano Arthur Danto, trouxe o conceito de morte da história da arte. Em Ferreira Gullar encontrou as reflexões sobre o esvaziamento da crítica e da produção artística. Mas foi do exterior que Trigo trouxe os exemplos que norteiam A grande feira. O britânico Damien Hirst e o norte-americano Jeff Koons permeiam todo o livro.

São poucos os casos brasileiros. Mesmo assim, Trigo não deixa de lembrar alguns episódios recentes para endossar a tese de um sistema conivente. "Em março de 2008, mais de 100 artistas brasileiros foram a Madri participar da feira comercial Arco, às custas do Estado, que investiu R$ 2,6 milhões (1 milhão de euros) na participação do país. Não estou dizendo que isso é errado ; ainda que o assunto dê margem a um longo debate sobre as relações entre o artista e o Estado ;, mas é um fenômeno sugestivo do novo paradigma no qual o artista contemporâneo dá as mãos alegremente ao capital globalizado e ao apoio do governo", escreve. Abaixo, o autor fala sobre a sua investigação e os rumos da arte contemporânea.

A GRANDE FEIRA
De Luciano Trigo. Civilização Brasileira, 240 páginas. R$ 34,90.



O que o motivou a escrever A grande feira?
Pelo menos desde Manet, a história da arte foi marcada por uma sucessão de embates e pela afirmação de propostas artísticas voltadas para o futuro. Assim, Manet resultou no impressionismo, que resultou em Cézanne, que resultou no cubismo, que influenciou a arte abstrata. Ou, em outro recorte, diferentes movimentos de vanguarda tiveram como premissa a contestação do mercado e das instituições. Isso tudo acabou: no horizonte pós-moderno em que vivemos, contenta-se com a reciclagem de recursos e linguagens do passado, e os artistas se renderam incondicionalmente às instituições e ao mercado.

Você costuma dizer que arte contemporânea é um tema pouco produtivo para debates, que sempre gera reações de polarização vazias, sem muita reflexão crítica. A quê você atribui esse esvaziamento da crítica?

A crítica deveria funcionar como um contrapoder, em vez de ser subserviente ao mercado e às instâncias mais poderosas do sistema da arte. Mas praticamente toda crítica que se faz hoje é uma crítica de endosso: o papel do crítico, na prática, deixou de ser julgar e passou a ser o de meramente testemunhar. É um papel muito pequeno dentro do sistema da arte. Então, quando aparece alguém com um ponto de vista minimamente questionador, é visto como uma ameaça, ou como um inimigo a combater. Perdeu-se o hábito do debate e da troca de ideias. Ou você adere incondicionalmente ao status quo, ou é simplesmente barrado no clube. É por isso que somente uma pessoa "de fora" do meio da arte poderia escrever um livro como A grande feira.

Contestar e legitimidade da arte contemporânea muitas vezes é visto como uma atitude reacionária. O que você pensa disso?
Isso mostra a superficialidade que reina no meio. Boa parte da produção artística hoje se baseia na matriz conceitual iniciada por Marcel Duchamp ; é o que chamo no livro de "arte por designação". Ora, Duchamp designou a roda de bicicleta como obra de arte em 1913, e o urinol em 1917. Isso é contemporâneo? De quem? Reacionário, para mim, é insistir em procedimentos que tinham sentido 50 ou mesmo 90 anos atrás. A arte precisa andar para frente. Qual a relevância de copiar Duchamp no século 21? Nenhuma.

Ainda é possível encontrar alguma legitimidade na arte contemporânea? Em que situações ou contextos?
Claro, pontualmente existem artistas fazendo coisas interessantes. Mas não se pode negar que o mainstream da arte hoje, a arte que é premiada e reconhecida internacionalmente, é a do vale-tudo, porque não existem mais critérios estéticos. E como ficou impossível discernir o que é bom e ruim, o único juiz passou a ser o mercado. Nesse contexto, conseguir se inserir numa rede de relacionamentos vale muito mais do que ter talento. Por exemplo, a nova gênia a receber destaque na mídia é a inglesa Sarah Maples. Ela tira uma fotografia de si mesma com um bigode feito de creme de barbear e batiza a obra de Tributo a Frida. Ora, qualquer adolescente faz isso. A diferença é que ela foi adotada pelo Charles Saatchi, o publicitário que inventou Damien Hirst e os chamados "young british artists". Tudo isso é discutido abertamente na Europa e nos Estados Unidos, mas no Brasil parece que é proibido.

Em A grande feira, você dedica muito espaço à produção estrangeira ao tomar Damien Hirst e Jeff Koons como exemplos constantes. Há também alguma arte brasileira, mas pouca em relação aos estrangeiros. Por que a opção? A arte contemporânea brasileira mereceria outro livro?
Com a globalização, a produção artística brasileira de maior projeção se insere inevitavelmente no contexto que eu apresento e analiso. Aprecio o trabalho de diversos artistas brasileiros, como Adriana Varejão e Ernesto Neto, mas meu gosto pessoal não importa. Questiono o contexto, não os artistas individualmente ; até porque quase sempre são pessoas que trabalham com real convicção no que fazem. A Sarah Maples tem o direito de acreditar que está produzindo uma grande obra de arte. O problema é o sistema comprá-la e vendê-la como tal. Porque isso tem impacto até no jovem estudante, que está entrando numa escola de arte e aprende que não é preciso mais técnica, disciplina, talento, nada. Basta ter uma ideia "genial" e esperar o reconhecimento.

No livro, você sugere que nem mesmo o público interessa ao sistema da arte contemporânea. Ele é dispensável. É possível, então, falar em um divórcio entre a arte e a sociedade? A arte costumava refletir também mudanças no pensamento das civilizações. O que ela refletiria hoje?
Ao público, como à crítica, só cabe hoje o papel coadjuvante de endossar passivamente aquilo que o sistema vende. Todos os movimentos importantes da arte tiveram uma relação direta com seu contexto histórico. Esse laço se perdeu. O que um tubarão mergulhado em formol diz sobre o nosso tempo? Ou uma cama desarrumada, obra da Tracey Emin? Nada. A arte está devendo uma resposta às questões do presente. Coincidentemente, e eu chamo a atenção para isso no livro, o pós-modernismo na arte coincidiu com a teoria do fim da História proposta por Francis Fukuyama, segundo a qual o modelo neoliberal globalizado é o ponto de chegada da aventura do homem na Terra. Isso sim me parece altamente reacionário.

A vanguarda deixou de existir na arte contemporânea? Como?
As últimas vanguardas artísticas aconteceram nas décadas de 1960 e 1970. Não sou eu que digo isso, há um consenso mesmo entre os teóricos que endossam o pluralismo pós-moderno. De lá para cá, a gente vive no horizonte do "fim da arte", ideia lançada por Arthur C.Danto e Hans Belting. Mas essa tese, que coincidiu com a adesão do sistema da arte a uma lógica semelhante à da moda e do espetáculo, também já está dando sinais de fadiga. A arte precisa parar de reciclar e voltar a ter ambição. Como? Não tenho a menor ideia.

Esse esvaziamento seria um reflexo da sociedade contemporânea e de um esvaziamento crítico em todos os campos do pensamento?
Também, mas na arte ele assume contornos mais drásticos, porque se perdeu qualquer referencial, até mesmo o do ridículo. Sherrie Levine reproduz fotografias do Walker Evanas e assina o nome dela. Isso na literatura não colaria jamais. Andrés Serrano mergulha um crucifixo em urina e batiza a obra de Piss Christ. Um maluco resolve deixar um cachorro morrer de fome amarrado numa galeria. Outro maluco resolve implantar uma orelha no braço. Ou seja, a arte virou um gabinete de aberrações e curiosidades. Entendo que os primeiros a se revoltar contra esse estado de coisas deveriam ser os artistas sérios, mas há um ambiente de complacência generalizada.

Qual o papel da superexposição proporcionada pelas tecnologias de comunicação nesse cenário?
A superexposição acelera a lógica do consumo, da espetacularização e da celebridade que caracteriza o sistema da arte hoje. Mas, periodicamente, o mesmo sistema exige a substituição dessas estrelas efêmeras. Se você pegar a lista dos artistas que eram apresentados internacionalmente como gênios nos anos 1980, verá que a grande maioria desapareceu do mapa.

Outro ponto interessante no qual você toca é a formação precária dos artistas. Quando, na história da arte brasileira, essa formação começa a ficar precária? Ou sempre foi?
Vou dar um exemplo. Até os anos 1970, a Escola Nacional de Belas Artes funcionava no prédio do Museu Nacional de Belas Artes, no centro do Rio de Janeiro, que abriga o mais importante acervo de arte brasileira. Na ditadura, a escola foi transferida para a Ilha do Fundão, mas o acervo não. Ou seja, o ensino ficou dissociado do contato com a História. Quando eu estava escrevendo o livro, a página de abertura do portal da Escola de Belas Artes tinha como ilustração não uma escultura ou uma pintura, mas uma casca de ovo quebrada.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação