Diversão e Arte

Veias abertas de Hollywood

Sexo, drogas e filmes: era essa a cartilha dos mestres que transformaram os anos 1960 e 1970 num dos períodos mais criativos e ousados do cinema americano

postado em 04/01/2010 12:27
Poucos diretores americanos travaram batalhas tão ferozes contra estúdios de cinema quanto Robert Altman. Intransigente, o autor de obras-primas como M.A.S.H. e Nashville raramente se entendeu com executivos da indústria ou departamentos de marketing. Mas, no verão de 1997, o velho cineasta resolveu dar uma chance a Hollywood. Aventurou-se em dois multiplexes de Beverly Hills à procura de um bom filme para ver. "Todas as telas estavam exibindo O mundo perdido - Jurassic Park, Con Air - A rota de fuga, O casamento do meu melhor amigo e A outra face. Não havia um único filme que uma pessoa inteligente pudesse dizer: 'Esse eu quero ver'. Tudo se tornou um grande parque de diversões. É a morte do cinema", comentou. Peter Biskind: Ainda que carregado de drama e fúria, o desabafo de Altman espelha o desencanto de uma geração de cineastas que, nos anos 1960 e 1970, rompeu com a mesmice industrial, tomou o controle sobre os estúdios e revigorou radicalmente o cinema americano. É essa "última era de ouro" que o jornalista Peter Biskind investiga no livro Como a geração sexo-drogas-e-rock 'n' roll salvou Hollywood, lançado no Brasil pela editora Intrínseca (com tradução de Ana Maria Bahiana). Não por coincidência, o depoimento de Altman está no capítulo sobre os bastidores de Guerra nas estrelas (1977), a criação mais famosa da "nova Hollywood". Soa irônico, mas é verdade: os mesmo grupo de autores que incendiou as regras de mercado calhou de descobrir a fórmula do blockbuster. Combustão cultural A saga da reinvenção de Hollywood começa muito antes da ficção-científica de George Lucas. No início dos anos 1960, jovens diretores formados por faculdades de cinema assimilavam a "combustão cultural" de uma época de transformações aceleradas. O movimento dos direitos civis, os Beatles, a pílula, o Vietnã e as drogas estavam nas entrelinhas dos primeiros projetos de alunos como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Stanley Kubrick e Brian De Palma. Mas a indústria, combalida pela crise dos estúdios, só sentiu os efeitos do flower power no fim da década. Pequenas produtoras como a BBS e filmes arriscados como Bonnie e Clyde - Uma rajada de balas e Easy rider - Sem destino flagraram a contracultura e a imortalizaram. "Tudo era uma grande festa. O velho era sempre ruim, o novo era sempre bom. Nada era sagrado; tudo podia ser mudado. Era, na realidade, uma revolução cultural à moda americana", descreve Biskind. Na era dos cineastas (que ganharam o poder sobre os produtores), os ídolos-autores enriqueciam cedo e deixavam-se levar por ataques de narcisismo, torravam dinheiro, afundavam em cocaína, traíam e eram traídos. Com o passar dos anos, esse desejo por arte urgente se converteu em algo mais complexo: as negociações entre produtores e diretores produziu os primeiros megalançamentos de Hollywood. O poderoso chefão, de Coppola, Tubarão, de Spielberg, e O exorcista, de William Friedkin, eram projetos comerciais convertidos em obras de autor. Sem que se dessem conta, os diretores permitiram que os estúdios descobrissem o potencial do mercado cinematográfico. "Tenho nojo da indústria americana de cinema, agora. Havia tantos filmes bons, e uma parte de mim acha que Guerra nas estrelas é em parte responsável pela direção que a indústria tomou, e me sinto muito mal com isso", observou a montadora Marcia Lucas, ex-mulher de George. Como era típico no cinema dos anos 1970, um filme sem final feliz. Como a geração sexo-drogas-e-rock'n'roll salvou Hollywood De Peter Biskind. Tradução de Ana Maria Bahiana. 502 páginas. Editora Intrínseca. Preço: R$ 44,90. Os bastidores Easy Rider - Sem Destino (1969) Antes de virar símbolo da contracultura, Easy Rider já havia entrado para a história do cinema por outro motivo: a produção foi tão acidentada e confusa que poucos acreditavam no sucesso do filme. Um dos maiores responsáveis pela boa performance do longa tenha sido o pequeno estúdio BBS, que marcou época ao garantir liberdade (quase) total aos cineastas. O reinado era dos cineastas. Mas, ironicamente, foi o bom senso dos produtores que controlou os humores do diretor Dennis Hopper. Siderado em viagens de drogas, ele queria um épico de quase 4 horas e meia de duração. Quando viu a versão final, com 1h35, esbravejou: "Vocês transformaram meu filme num programa de tevê." Trecho do livro: "O impacto de Sem destino em seus criadores e na indústria como um todo foi nada menos do que sísmico. Hopper foi catapultado para o panteão das celebridades da contracultura, que incluía John Lennon, Abbie Hoffman e Timothy Leary. Ele pode ter começado sozinho a descer pela escorregadia ladeira da megalomania e da grandiloquência, mas também teve um bocado de ajuda." Bonnie E Clyde - Uma Rajada De Balas (1967) Reza a lenda que o galã Warren Beatty literalmente beijou os pés do chefão da Warner, Jack Warner, para que o estúdio bancasse Bonnie e Clyde, "faroeste moderno" sobre o casal de bandidos que escandalizou a América. Mas não foi tarefa tranquila convencer a empresa a assumir uma fita policial sangrenta e amoral, que destoava dos sucessos maniqueístas dos anos 1950. Estreou mal. Mas, numa reviravolta inesperada, conquistou a crítica de tal forma (a revista Time o descreveu como um "marco na história do cinema") que, relançado, recebeu 10 indicações ao Oscar. Trecho do livro: "Bonnie e Clyde inverteu as polaridades morais convencionais. Os vilões do filme eram as tradicionais figuras de autoridade: pais, delegados." O Poderoso Chefão (1972) Francis Ford Coppola era um cineasta de segunda divisão quando recebeu a proposta de adaptar o best- seller de Mario Puzo. Num primeiro momento, o cineasta detestou a ideia de conduzir um projeto tão comercial. "Eu curtia nouvelle vague e Fellini. O livro representava tudo aquilo que eu queria evitar na minha vida", afirmou. Durante as filmagens, Coppola acabou se identificando com a saga familiar. Lançado num esquema de distribuição inédito, em centenas de salas simultaneamente, o longa inaugurou a era dos superlançamentos e venceu o Oscar. Trecho do livro: "Apesar de os executivos da Warner terem menosprezado Coppola como diretor, com falsas pretensões autorais, ele havia se conectado profundamente com os temas de O poderoso chefão (e sua continuação). As questões do poder, da rivalidade entre irmãos, da masculinidade e do patriarcado ecoaram nele de um modo como jamais aconteceria em nenhum outro filme que faria." O Exorcista (1973) Nas livrarias, o romance de horror escrito por William Peter Blatty era um sucesso monstruoso. Mas ninguém queria aceitar o convite da Warner para dirigir O exorcista. Arthur Penn não se interessou, John Boorman detestava o livro e Peter Bogdanovich esnobou a ideia. A missão coube a William Friedkin (de Operação França). Exigente e autoritário, o diretor obrigou a equipe a enfrentar um processo de filmagem exaustivo (de mais de 300 dias), brigou com o elenco, odiou a trilha de Lalo Schifrin (disse que "parecia novela mexicana") e ficou revoltado quando não recebeu uma indicação ao Oscar pela direção do longa, que foi um fenômeno de bilheteria. Trecho do livro: "O exorcista foi uma porrada. As pessoas desmaiavam, perdiam os sentidos e entravam em crise histérica. Os exibidores mantinham à mão lixeiras com areia para socorrer pessoas que não conseguiam manter o jantar no estômago. Os espectadores ficaram tão convencidos de que eles ou alguém que conheciam estava possuído pelo diabo que passaram a infernizar a Igreja Católica com pedidos de exorcismo. Mas os críticos se dividiram." Tubarão (1975) Steven Spielberg era um estranho no ninho da "nova Hollywood". Enquanto a maior parte dos cineastas vivia na pele o desbunde dos anos 1960 - em festanças regadas a maconha, cocaína e demonstrações de amor livre -, o rapaz de Cincinnati (sempre sóbrio) preferia assistir à tevê. Ainda assim, fez amizade com Martin Scorsese e George Lucas e, apaixonado pela velha indústria do cinema, se tornou o nome mais popular de sua geração. É curioso, porém, que quase tenha deixado de lado o projeto de Tubarão, que via como um repeteco do formato do thriller Encurralado. Decidiu que só faria o filme se rodasse todas as cenas de ação em cenários reais. Mas os efeitos especiais decepcionaram: por isso o tubarão só aparece nas cenas finais. Com uso pioneiro de publicidade na televisão, o filme quebrou recordes de arrecadação. Trecho do livro: "Tubarão mudou a indústria para sempre, na medida em que os estúdios descobriram o valor de lançamentos amplos e publicidade maciça na televisão, duas coisas que aumentaram os custos de marketing e distribuição, diminuindo a importância de críticas em veículos impressos, tornando impossível um filme crescer gradual e lentamente. Mais que isso, despertou o apetite corporativo por lucros rápidos, o que significa que dali para a frente os estúdios queriam que todo filme fosse Tubarão." Taxi Driver (1976) Martin Scorsese já era um cineasta de prestígio quando foi escalado para dirigir Taxi driver. O longa de estreia, Caminhos perigosos (1973), havia provocado excelente repercussão, principalmente entre críticos. Mas uma das obras-primas do diretor é, acima de tudo, um retrato do roteirista - e bad boy em tempo integral - Paul Schrader. Schrader era o próprio Travis Bickle (o taxista solitário interpretado por Robert De Niro): vagava à noite por bares e boates de strip tease, armado e bebendo whisky. Perturbado por fantasias violentas de suicídio, escreveu o script febrilmente durante 10 dias. De Niro pegou as roupas do roteirista para compor o personagem. Trecho do livro: "A ambição de Taxi driver era ir um passo adiante de Bonnie e Clyde, aprofundando a investigação a respeito do fenômeno da celebridade. Scorsese e Schrader tiraram dos fora da lei da época da Depressão sua aura de romantismo populista e transformaram sua história numa narrativa de pura brutalidade." Guerras nas Estrelas (1977) Animado com o sucesso de Loucuras de verão (1973), George Lucas decidiu abandonar as ambições intelectuais (por incrível que pareça, ele dirigiria Apocalypse now) e mirar multidões. Amigos cineastas como Brian de Palma e Francis Ford Coppola detestaram a ideia. Até a mulher do diretor, a montadora Marcia Lucas, preferiu dedicar-se a New York, New York, de Martin Scorsese (que fracassaria nas bilheterias). Só Spielberg o defendeu. Depois de discussões intermináveis com a equipe de efeitos especiais da recém-criada Industrial Light and Magic, George suspeitou que tinha produzido um abacaxi. Mas o filme se deu tão bem que inaugurou o império de Lucas e a era dos blockbusters juvenis. A "nova Hollywood", jogada para escanteio, agonizava. Trecho do livro: "Guerra nas estrelas enfatizou as lições aprendidas em Tubarão: crianças e jovens são capazes de ver repetidas vezes um filme sem estrelas. Mas, ao contrário de Tubarão, mostrava que era possível ter um filme de sucesso fenomenal baseado em material original. Guerra nas estrelas acordou os estúdios para o potencial do mershandising, mostrando que a venda de livros, camisetas e bonecos podia ser uma fonte significativa de lucros."

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