Diversão e Arte

Instrumentos do século 14 nas mãos virtuosas de artistas da cidade resgatam a música antiga para os dias de hoje

Nahima Maciel
postado em 03/03/2010 07:00 / atualizado em 17/09/2020 10:26

A flauta era instrumento de pastor. O alaúde veio das arábias e carregava na caixa em forma abaulada o símbolo da fertilidade. O cravo respondia pelo ritmo da orquestra e a viola de gamba já existia no século 14. Tais instrumentos eram muito populares antes de pianos, flautas e violinos começarem a ser fabricados em escalas industriais em algum momento do século 19. Desde então, o que ficou conhecido como música antiga passou por surtos de recuperação. Na Europa, aconteceu nos anos 1950. Em Brasília, a música antiga ganhou força nas últimas duas décadas graças ao interesse isolado de alguns músicos que conseguiram manter uma agenda de apresentações, gravações de disco e uma rotina pedagógica, com direito a formação profissional na Escola de Música (EMB). O alaúde e a guitarra teorbada de Felipe Maravalhas: raridades fisgaram o instrumentistaEm 1993, depois de 10 anos dedicados ao estudo, a gambista Cecília Aprigliano criou o curso de viola da gamba na EMB. ;Claro que a gente é minoria, mas os espaços são criados. Me sinto extremamente privilegiada de poder dar aula de viola da gamba numa escola pública;, diz. O Núcleo de Música Antiga da EMB é um propagador do estilo na cidade. As turmas são pequenas ; uma média de 5 a 7 alunos por semestre ; e a demanda não é das maiores, mas existe. A flauta doce está entre os mais procurados. A flautista Karla Dias, professora da escola e integrante do trio Atalanta, formou vários alunos que acabam em cursos no exterior, já que a Universidade de Brasília (UnB) não tem graduação no gênero. Para tocar e apresentar o repertório, Karla formou com o marido Fernando Lopes, flautista traverso, o Atalanta. ;O que caracteriza esse tipo de música é uma abordagem histórica do repertório, uma tentativa de não se preocupar só com a retórica e o discurso do autor, mas tentar compreender para quais circunstâncias a música foi composta, como era a acústica, como as pessoas viam a música;, diz Karla. Ana Cecília Tavares se encantou com o cravo: instrumento caro e de som muito delicadoA cravista Ana Cecília Tavares, integrante do grupo Estúdio Barroco, se surpreende com a procura. O cravo não é fácil de ser adquirido ; está entre os mais caros e custa em média R$ 32 mil ; e a maioria dos alunos não possui o instrumento. ;A dificuldade para ter um instrumento é grande. De todos os meus alunos, só uma comprou um cravo. É caro encomendar, tem que mandar fazer hoje e esperar (esse tempo pode chegar a dois anos). Tenho dois, mas um está para chegar, já faz um ano e meio que encomendei;, conta a instrumentista, que acaba de gravar A arte da fuga (Bach) em duo com o também cravista Marcelo Fagerlande. ;No Brasil tem dois fabricantes.; Mas há quem faça da raridade ou dificuldade de adquirir o instrumento um fascínio. Felipe Maravalhas é formado em alaúde pela EMB e em violão clássico pela UnB, mas é com a guitarra teorbada que ele mais gosta de tocar e gravar. ;Foi um instrumento que redescobri e que não é tocado desde o século 18;, garante. Maravalhas descobriu a guitarra de 11 cordas no Museu da Cité de la Musique, em Paris, e encomendou uma réplica a um lutier brasileiro. ;A diferença desses instrumentos antigos é que eles têm uma sonoridade mais delicada, com menos volume e mais aveludada. Eles eram feitos para tocar em salas pequenas e para menos pessoas, não havia o grande público que passou a ter no século 19, quando instrumentos foram modificados para ganhar volume e atingir público maior.; Cecília Aprigliano criou o curso de viola da gamba na EMBAo lado da mulher, a gambista Iara Ungarelli, e do violinista Zoltan Paulinyi, Maravalhas forma o Sonare, grupo dedicado exclusivamente ao repertório de música antiga. ;Esse mundo da música antiga tem muito ainda para vasculhar e descobrir. É diferente do que é a música dos séculos 19 e 20, sobre as quais sabemos muito. Já na música muito antiga é difícil, quanto mais pra trás, mais complexo.; O repertório de música antiga tem autores conhecidos, como Antonio Vivaldi, Johann Sebastian Bach, Jean Philippe Rameau, Jean-Baptiste Lully, François Couperin, Georg Friedrich Haendel e Monteverdi, mas há também um vasto leque de desconhecidos que costumam entrar frequentemente para os programas e discos de quem se dedica ao gênero. Virtuosismo Há também muito canto na música antiga. No entanto, poucos cantores se especializam no gênero. O tipo de estudo e voz necessários para cantar a música dos séculos 16, 17 e 18 tem diferenças estruturais dos processos empregados no século 19. A música antiga exige vozes pouco potentes, mas muito flexíveis enquanto os períodos clássico, romântico e moderno precisam do oposto. ;Uma coisa exclui a outra;, explica o cantor André Vidal, especializado em música antiga pela Royal Academy de Londres e integrante do Estúdio Barroco. ;É um tipo de música que privilegia o virtuosismo da voz, a capacidade de cantar com muita velocidade e extensão vocal. É diferente da música que vem depois e precisa de vozes com muita potência e sem tanta flexibilidade.; Para o alaudista Fernando Dell;Isola, professor da EMB, a velocidade do mundo contemporâneo é um dos fatores para explicar a falta de popularidade da música antiga nos dias de hoje. ;É tudo muito rápido, então as pessoas não querem parar para escutar uma música que tem pouco volume, que não tem letra;, acredita. ;Se o nosso Teatro Nacional tivesse a determinação de realmente aproximar a música teria que ter um coro fixo para óperas, um corpo de baile forte e uma orquestra barroca.; Hoje, em Brasília, apenas duas salas costumam manter programação regular de música antiga. No auditório da EMB há uma semana dedicada ao tema todos os anos enquanto na Casa Thomas Jefferson o programa Sextas Musicais se tornou refúgio desses instrumentistas. Karla Dias e Fernando Lopes escolheram a flauta doce e o traverso: repertório antigoSem fronteiras O que se convencionou chamar de música antiga corresponde à produção barroca e renascentista, período que vai do século 15 ao 18. Naqueles tempos, música ao vivo não era um luxo, mas uma necessidade. Para ouvir era preciso tocar e não havia muitas fronteiras entre o erudito e o popular. Tudo era música e as diferenças eram pautadas pela funcionalidade. Música para dançar, cantar, rezar ou simplesmente assistir. Com menos pessoas no planeta, não se cogitava produzir para grandes públicos. Orquestras, quando formadas, não passavam de 20 pessoas e alcançar grandes volumes sonoros não estava entre as preocupações de compositores, instrumentistas e lutiers. Além disso, a variedade de instrumentos da época faz qualquer orquestra contemporânea parecer um minimercado. Graças à inexistência da industrialização e às dificuldades de comunicação, cada feudo ou região construía suas cordas, sopros e percussões de acordo com os costumes e habilidades locais. Ouça aToccata XIII (de Alessandro Piccinini), tocada no alaúde por Fernando Dell´Isola ; CURIOSIDADES * Instrumentistas de música antiga raramente têm instrumentos originais. Por serem muito antigos, têm preços inviáveis. O comum é fazerem réplicas das peças que encontram nos museus * Tripa era o material usado nas cordas de violões, guitarras, alaúdes e violinos barrocos e renascentistas. Alguns desses instrumentos, como o alaúde e a guitarra teorbada, eram feitos com cordas duplas, ao contrário do violão contemporâneo * A flauta traversa, sempre em madeira, é a versão antiga da flauta transversal e aparece em muitos quadros de pintores renascentistas, assim como o alaúde, instrumento considerado feminino e sensual nos séculos 16, 17 e 18. * A barriga abaulada do alaúde ; originário do norte da África e com mais de 2.500 anos de existência ; simboliza a fertilidade feminina. Al;Ud é o nome original Por que eles escolheram música antiga "Eu comecei a tocar violão e a primeira vez que escutei a música de Bach me apaixonei. Queria tocar Bach e as músicas que ele compôs foram para alaúde. Meu interesse maior era no repertório, não exatamente no instrumento", Fernando Dell;Isola, alaudista, gravou o CD Sonatas forasteiras com obras para alaúde solo "Um amigo foi para os Estados Unidos e comprou um alaúde. Veio para cá e, quando voltou para os Estados Unidos para fazer o doutorado deixou o instrumento para eu tomar conta. Eu ficava olhando e comecei a brincar de tocar alaúde, sem pretensão de me tomar alaudista. Tinha em mente carreira de violonista", Felipe Maravalhas, do grupo Sonare "Quando criança, estudei flauta doce, que é um instrumento de música antiga, então já tinha uma afinidade grande com o repertório da renascença e do barroco. Um dia fui assistir o grupo Quadro Cervantes e tinha uma gambista. Me encantei. Na época, em uma semana consegui alugar um instrumento", Cecília Aprigliano, gambista do grupo Estudio barroco . "O que mais me encantou foi a sonoridade. É totalmente diferente. Fui criada em família de pianista, comecei no piano e quando passei para o cravo tive esse impacto da sonoridade. Outra coisa interessante é o toque do cravo, que tem o teclado mais apertado que o do piano. O toque é mais suave. E o repertório é fascinante. Ao contrário do que imagina, tem compositores maravilhoso que escreveram para o instrumento", Ana Cecília Tavares, do grupo Estúdio Barroco.

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