Diversão e Arte

Escritora Hilary Mantel explora o melhor do humor inglês para tratar de paranormalidade

Nahima Maciel
postado em 30/04/2010 08:36
Alison é uma médium que frequenta feiras místicas e faz revelações para plateias em auditório. Vê os mortos o tempo inteiro e tem um espírito guia impertinente e insuportável, mas é obrigada a aguentá-lo porque as coisas são assim mesmo. Um dia, cansada de viver rodeada de espectros, contrata uma assistente. Colette chega para organizar a desogranizada vida de Alison, mas o que a médium queria mesmo era a amizade da moça. Contado assim, Além da escuridão parece um livro simplório sobre paranormais. No entanto, quem assina o romance recém-lançado pela Bertrand Brasil é a inglesa Hilary Mantel. Com habilidade, a escritora nunca perde o controle da narrativa e transforma em humor-negro da melhor qualidade a história da dupla que vive a vagar pela Grã-Bretanha atrás de clientes cuja sorte será lida e revelada. A narrativa da Hilary Mantel envolve o leitor com muita ironia e humor diante de um assunto delicadoHilary envolve o leitor com ironia e humor inteligente. Além da escuridão fala de coisas muito sombrias, mas não há como disfarçar o riso em passagens como a cena da feira em que Lady Di, logo após morrer em um acidente de carro em Paris, é solicitada por milhares de fãs. A leveza de Alison ao lidar com um cenário cheio de espíritos atormentados de um lado e impostores do outro dá o tom do livro e não deixa a narrativa cair em uma trilha piegas. A personagem Alison, na verdade, tem histórico trágico. Abuso sexual na infância, mãe violenta e fracasso escolar fazem parte do currículo, além do tormento causado pelos mortos que perturbam a médium a cada segundo. O problema é que a generosidade dela a torna completamente aberta a receber qualquer coisa de qualquer um, personalidade bem diferente de Colette, a assistente fria, calculista e pouco crédula em relação ao "talento" da patroa. Há um tanto de Hilary Mantel nas duas personagens. Além da escuridão é o 11º livro da autora. Publicado em 2005, não vendeu tanto quanto Wolf Hall, lançado no ano passado e responsável por dar a Hilary o Man Booker Prize, prêmio mais relevante da literatura de língua inglesa. Além da escuridão esteve na lista dos indicados ao Orange Prize, mas não chegou a vencer. O clima sobrenatural perpassa pelo menos dois outros romances da autora. A referência vem de uma lembrança da infância. Aos 7 anos, Hilary garante ter sentido a presença do mal no jardim de casa. Ficou marcada pela experiência, embora não saiba explicar o que aconteceu. "Pecador" Criada em ambiente católico-apostólico, a autora deixou de dar crédito à religião aos 12 anos. Agora aos 58, se debruça sobre a crítica ao sistema cristão, elemento fundamental de sua escrita. "Você pode deixar a igreja, mas a igreja nunca deixa você. Como uma criança católica você aprende a ser um pecador que precisa sempre se repreender de más ações e maus pensamentos. E esse hábito não é fácil de quebrar", conta. A culpa e a vergonha tão ameaçadoras no discurso católico ganham dimensões importantes na construção dos personagens de Hilary. Alison não seria a médium gentil e compreensiva não fosse a culpa carregada desde a infância violenta. "Você fica sempre com um resíduo de culpa ao longo da vida", acredita Hilary. Além da escuridão vale ser lido por muitos desses motivos, mas sobretudo por se tratar de um romance cômico muito inteligente e perspicaz. Trechos Além da escuridão "Durante alguns dias, os demônios se mostraram discretamente a Al, tremulando no canto do olho; deixavam sua marca por todo o corpo dela. É como se, ela pensava, andassem de um em um e limpassem os pés em mim. A febre baixara, a língua ficara coberta por uma camada gordurosa verde-amarelada. Os olhos pareciam pequenos e remelentos. As pernas coçavam e ela perdia a sensibilidade nos pés, que ainda pareciam decididos a ir embora, deixando para trás toda aquela bagunça, mas embora houvesse a intenção, ela não tinha mais a capacidade." "Querem a mim, e é por minha causa que existem. É por minha causa que podem continuar como continuam. Aitkenside e Keef Capstick, assim como Morris e Bob Fox e Pikey Pete. Que posso fazer? A gente é apenas humano, e acha que eles vão jogar pelas regras da Terra. Mas o forte no outro lado é que não há regras. Pelo menos que a gente entenda. Assim, eles acabam levando vantagem. E o saldo de tudo, Colette, é que há mais deles do que de nós." "Mas Colette perguntava, em pânico por um momento, atirada em descrença: e se eu morrer? AL, que devo fazer? Que devo fazer se morrer? Al respondia: mantenha a cabeça no lugar. Não chore. Não fale com ninguém. Não coma nada. Repita sem parar o seu nome. Feche os olhos e procure a luz. Se alguém disser: siga-me, peça para se identificar. Quando vir a luz, caminhe em direção a ela. Mantenha a bolsa grudada ao corpo, onde antes havia corpo. Não abra a bolsa, e lembre que a última coisa que deve fazer é puxar um mapa, por mais perdida que se sinta. E alguém lhe pedir dinheiro, ignore, passe reto. É só continuar andando para a luz. Não olhe ninguém nos olhos. Não deixe ninguém deter você." Quatro perguntas para Hilary Mantel Por que escrever romances de conotações sobrenaturais? Meus romances se passam em diferentes tempos e lugares. O sobrenatural presente está em Além da escuridão e Fludd. Mas eu sempre lido com temas como intimidade e vergonha - ambos parte de nossas vidas e condutores do que reprimimos ou esperamos ocultar. Acredito que minha própria formação me levou a esses temas - não somente o fato de eu ter crescido sempre pensando no além-mundo, na salvação e na danação, mas também porque em minha família há alguns segredos poderosos. O Brasil é um país de grande sincretismo religioso e temos uma quantidade muito grande de espíritas. Acha que o romance, por tratar o tema com muita ironia, agradaria a essas pessoas? Eu certamente espero que Além da escuridão atraia os leitores pela questão do sobrenatural, mas pensando, obviamente, que a bagagem cultural é bem diferente. Eu espero que as pessoas fiquem curiosas sobre isso. O livro não diz aos leitores o que pensar. Alison é uma fraude ou é genuína ao falar com os mortos? Quanto da ação do livro está dentro da cabeça dela e quanto disso acontece no mundo real? O leitor pode fazer seu próprio julgamento. Todos os meus romances são engraçados em certo grau. É apenas a maneira como vejo o mundo. E há algo inerentemente burlesco sobre essas cenas psíquicas. Eu queria capturar isso, mas também mostrar que há um lado disso muito assustador. Acho que o humor é mais forte que o horror. E como é essa situação na Inglaterra? O número de pessoas que vai à igreja está diminuindo - não apenas para os católicos, mas para todos os que se denominam cristãos. No entanto, as pessoas parecem mais supersticiosas do que nunca. Grandes shows com médiuns são muito populares e profissionais psíquicos aparecem por teatros por todo o país. Quando você vê a audiência é uma experiência muito estranha. Por um lado, as pessoas vêm apenas para se divertir. Mas ao mesmo tempo, uma parte acredita, fica nervosa e excitada. Alison e Colette, de certa forma, representam tipos comuns na sociedade contemporânea? Elas são os opostos. Alison é vulnerável, imaginativa e dá muita atenção aos seus sentimentos. Colette tem um coração gelado. Ela não se conecta com as pessoas e pensa o tempo todo sobre eficiência e como fazer dinheiro. E tenta fazer Alison operar como se fosse uma máquina. Colette perde tanto! Alison repara em tudo e fica quase destruída porque suas barreiras não são fortes o suficiente para manter outras influências de fora. Elas são ilustrações de tipos extremos. A maior parte de nós se encaixa em algum lugar no meio disso. Uma pessoa equilibrada ficaria no meio das duas, mas essa pessoas equilibradas não têm as virtudes e talentos de cada uma. Você pode também dizer que Colette e Alison representam duas tendências em nossas vidas públicas. Por tradição, as pessoas na Grã-Bretanha não mostram seus sentimentos. Mas alguns acreditam que os britânicos vêm mudando - desde a morte da princesa Diana nos tornamos uma nação emotiva e sentimental. Livros da autora publicados no Brasil Experimento amoroso O gigante O'brien Oito meses na rua Gaza Mudança de clima Além da escuridão De Hilary Mantel. Bertand Brasil, 420 páginas. R$ 45.

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