Diversão e Arte

Quarto longa concorrente ao Candango, O céu sobre os ombros entusiasma

postado em 29/11/2010 09:42

Mariana Moreira
Ricardo Daehn

Tiago Faria
Yale Gontijo

Passado o peso da primeiríssima projeção de O céu sobre os ombros, na quarta noite competitiva do festival de cinema, o diretor estreante Sérgio Borges admitiu: ;A sensação é de alívio;. O diretor mineiro do longa-metragem foi recebido com entusiasmo pelo público no Cine Brasília. Mas, durante a sessão, ele cultivou pontuais momentos de apreensão. ;Você vê uma pessoa saindo da sala, dá um certo nervosismo. Mas tudo terminou bem. O mais importante do filme nem é mostrar os personagens, mas fazer com que as pessoas criem uma relação com os sentimentos que estão na tela, como se elas próprias estivessem ali;, observou.

Desenvolvido após quatro anos de pesquisa, o longa convida anônimos a encenar vivências próprias. A experiência, no limite entre documentário e ficção, instigou os espectadores. Após a projeção, não foram poucos os que perguntaram a Sérgio sobre a veracidade de cenas que flagram momentos íntimos dos personagens. ;Agradeço à generosidade das pessoas que estão no filme. O clima de confiança entre o elenco e a equipe era muito intenso. Mas prefiro não identificar os trechos que foram encenados. Esse é um dos mistérios do filme;, esquivou-se. ;O filme busca uma humanidade delicada, mas, ao mesmo tempo, dura e solitária;, explicou.

Apreensivo no início da sessão, o cineasta Sérgio Borges (de vermelho) foi recompensado ao final: No debate, na tarde de ontem, Borges definiu os integrantes da fita como atores não-profissionais e pessoas ;mansas e sensíveis;, capazes de ajudarem na elaboração de filme guiado pela ;calmaria;. A falta de limites entre documentário e realidade, na opinião do cineasta, acompanha o cinema desde 1922, com o filme Nanook, o esquimó, de Robert Flaherty. Natural do Congo, filho de uma portuguesa e de um angolano, Lwei ; um dos protagonistas do longa-metragem ;, após a exibição, disse que qualquer filme ;fica melhor; numa tela do tamanho da do Cine Brasília.

Sobre os limites da encenação, Lwei comentou que a mulher dele o vê como um ator, mas ele se percebeu como ;se interpretasse; a si mesmo. A excessiva exposição na fita não suscitou lamentação. ;Não posso me arrepender de nada que brotou naturalmente. Estou cansado e penso apenas no futuro imediato. Não tenho muita coisa a perder e não faço planos a longo prazo. Não me interessa ser famoso sem ter dinheiro;, esclareceu. Aos 32 anos, Lwei disse que a estreia em cinema não foi divertida. ;Sou muito reservado e não quero surfar na onda de algum sucesso que o filme possa ter. Queria muito, na verdade, é que existisse uma cura para a paralisia cerebral;, disse, ao abordar problemática do filho de 9 anos.

A transexual Dani, outra destacada personagem do longa, chamou atenção pela atuação. ;Na tela grande, percebi que minha pálpebra, na cena do choro, tremia e borbulhava, mas só desceu uma lágrima. Era uma de muitas que ainda estavam guardadas;, disse Dani, na participação no debate. Na vida real, ela tem mestrado em teoria da literatura e leciona na pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A desenvoltura intelectual apresentada no filme, portanto, não tem nada de encenação. Mas, nem tudo relativo à personagem foi inspirado na vida real da professora acadêmica que virou atriz. Entre as criações da fita, que cercam a imagem dela, está a ruptura com a família, que não é necessariamente real. ;É um drama humano que todo transexual enfrenta. O medo de se assumir e perder o amor dos pais;, declarou. Dani encontrou pontos de contato entre os três protagonistas da história. ;É legal como a escrita tem uma função importante para os personagens. É uma maneira de enfrentar a vida;, acredita.

À margem
Na mesma linha de embate com a vida, o curta local Falta de ar ; outro título mostrado no sábado ; driblou o padrão de atribuir cor ao presente e esmaecer (com preto-e-branco) o passado. ;A ditadura já foi amplamente discutida, mas com abordagem ligada às vítimas. Os torturadores ainda estão entre nós e isso é pouco falado. Quanto ao preto-e-branco, quis reforçar o momento de perda de cor que o torturador enfrenta;, disse Érico Monnerat, diretor do curta centrado na convalescência de um idoso que tenta esquecer os anos de chumbo. ;Gosto da dubiedade do personagem, da questão da relação familiar. Queria abordar o conflito de gerações, acrescentando o tom dos policiais dos anos 1970;, destacou.

Escolher um tema distanciado da realidade dos grandes centros foi uma das metas do diretor Fernando Segtowic, à frente do curta paraense Matinta, que fez dobradinha na sessão, com Falta de ar. ;Queríamos que plateias urbanas fossem levadas à floresta e ao mistério;, observou. Lenda disseminada entre familiares do cineasta, o tema central ainda não tinha tido a abordagem merecida, na opinião de Segtowic. ;Tudo é contado como se fosse coisa para criancinha. Então, encaramos como se fosse verdade, ressaltando aspectos humanos. Matinta pode ser visto como um filme de amor de uma pessoa que não se realiza;, observa. ;Toda mulher paraense, pela fome como se coloca e trabalha pela vida, tem algo da Matinta;, completou o ator e corroteirista Adriano Barroso. Dona de salto acrobático, que dispensou colchão fora da cena, Dira Paes ; que estreou em curtas com Matinta ; brincou: ;Gente, agora quero fazer O tigre e o dragão 2;.


CRÍTICA - O CÉU SOBRE OS OMBROS ****
Mistérios da intimidade

Tiago Faria


Da arquibancada de um estádio, um torcedor persegue os lances do time de futebol. Um homem conversa com dois amigos no balcão de um bar. Em uma pista mal iluminada, uma prostituta se debruça na janela de um carro e conversa com o ;cliente;. Três cenas cotidianas ; mas que, em O céu sobre os ombros, ganham a dimensão de um mistério a ser desvendado. Realidade, encenação ou um pouco dos dois? A dúvida desorienta e seduz o espectador nos 72 minutos do primeiro longa de Sérgio Borges, um dos fundadores do coletivo Teia.

Um ano após a exibição de
A falta que me faz no Festival de Brasília, o grupo mineiro de realizadores volta a afirmar o elo sentimental entre obras que, numa primeira impressão, deslumbram por imagens singulares: é um cinema que firma compromissos íntimos com os personagens, capazes de alterar radicalmente os itinerários das narrativas. Em O céu sobre os ombros, a comunhão com o elenco se dá de uma forma especialmente intensa e, para o público, enigmática.

O longo período de convivência adensa o novelo cinematográfico: os três ;atores-personagens; escolhidos por Borges são flagrados com proximidade e despojamento ; dentro de casa, nus, no banho, enquanto desabafam ao telefone e fazem sexo. Afetuosa, grudada à pele, a lente digital rejeita pudores e desarma os preconceitos da plateia. A identificação com os desejos dessas pessoas se torna possível, até inevitável, mesmo quando as histórias narradas beiram o extravagante. Uma certeza se impõe: todos ; personagens e espectadores ; estão sob o mesmo céu
.

Seria fácil, por exemplo, tratar com exotismo um tipo como Everlyn Barbin, a transexual que dá aulas na faculdade, dialoga sobre Foucault e se prostitui. Ou o hare krishna Murari Krishna, líder do Galoucura (torcida do Atlético Mineiro), cozinheiro de um restaurante vegetariano, lutador de artes marciais e atendente de telemarketing. Mas, ao agregar generosamente os signos que pertencem ao dia a dia do trio, o cineasta transcende o banal: um passeio noturno de skate, ao som de electropop barato, inspira um dos momentos mais pungentes que brilharam este ano na tela do Cine Brasília.

Em noite de delicadezas, o excesso de artifícios dos curtas-metragens provocou um choque estético até curioso ; ainda que nem sempre agradável. O paraense
Matinta (**), de Fernando Segtowick, parece tentado a criar uma atmosfera de fantasia em torno de uma lenda regional, mas não há ilusão que sobreviva à ação acelerada, superficial, da trama. Já o brasiliense Falta de ar (**), de Érico Monnerat, sugere um acerto de contas com a truculência do regime militar. Isso até o desfecho, com um quê de truque amargo. Carecem, nos dois casos, de um pouco de sutileza.

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