Diversão e Arte

As 127 pessoas do poeta Fernando Pessoa, em uma quase autobiografia

Nahima Maciel
postado em 17/04/2011 09:00
Fernando Pessoa era um sujeito sem imaginação. A afirmação é de efeito, mas passado o impacto, José Paulo Cavalcanti Filho explica e convence. Pessoa sofria de falta de imaginação porque não ia além de seu universo próximo para construir a criação literária que legou ao mundo. No entanto, era um gênio. E sabia muito bem disso. Já Cavalcanti sofre de encantamento. Várias vezes sucumbiu a Pessoa, e o fruto mais recente dessa entrega atende por Fernando Pessoa: uma quase autobiografia, tijolão de 734 páginas que pretende esgotar detalhes da vida do poeta português até então pouco explorados. Ou explorados de forma insuficiente, no entendimento de Cavalcanti. ;Esse livro é um sonho de infância e um grande equívoco porque sonhos de infância não foram feitos para serem realizados. Eles permanecem grandiosos na sua dimensão de sonho, mas como sou imprudente, escrevi. E aí aconteceram momentos mágicos onde o livro começa de verdade;, avisa o autor.

A magia tem raízes plantadas pelo próprio Pessoa. Cavalcanti se deixou levar por essa premissa e partiu do princípio de que a biografia do poeta estava contida na sua própria escrita. Nos versos, na criação dos heterônimos, na correspondência e num ralo diário. ;A biografia de todos os heterônimos contém a de Pessoa. Praticamente todos os poemas compõem a biografia dele. É uma colcha de retalhos;, avisa Cavalcanti. ;Ele escreveu quase 30 mil páginas. Quase 60 livros de 500 páginas. Depois de ler isso várias vezes, percebi que podia contar a vida dele usando as frases dele. Não as que ele escreveu como um diário ; só cinco anos de Pessoa são cobertos com diário e de maneira fragmentária. Mas estava tudo na obra. Percebi que podia dizer o que queria com palavras dele.;

Sem metáforas

Durante os últimos oito anos, o autor virou um detetive obcecado pela trajetória de Pessoa. Contratou um historiador e um jornalista, ambos portugueses, para ajudar na pesquisa. Saiu em busca de personagens citados em versos e livros para provar o quanto o poeta era literal e como as metáforas não cabiam nos versos. Encontrou figuras como a pequena que comia chocolate e o Esteves do poema Tabacaria. Convenceu um diretor de cemitério a abrir o túmulo de Mario de Sá Carneiro, amigo do poeta, para checar se não havia cartas perdidas no caixão e chegou a passear pela rua com óculos que alteravam a visão só para ver como Pessoa enxergava o mundo por trás de seus 12 graus de miopia.

Os heterônimos viraram uma ideia fixa. São, segundo a classificação da pesquisadora e escritora Teresa Rita Lopes, 72. Cavalcanti contabilizou 127. E para cada um escreveu uma possível biografia. Não se esquivou de polêmicas, como a homossexualidade do heterônimo Álvaro de Campos, um reflexo dos desejos do próprio poeta, na concepção do autor. As correspondências entre a biografia de Campos e a de Pessoa aparecem listadas como prova das intenções do poeta. O autor cavucou onde pôde para reconstituir o caso de amor de Pessoa com Ophélia Queiroz. Na esperança de encontrar alguma indicação de que o casal chegou ao ato sexual, saiu em busca de cartas inéditas. Não encontrou provas, mas se permitiu narrar a bela cena de despedida de Ophelia diante do corpo inerte do poeta, em novembro de 1935.

Dedicação
Para chegar à quase autobiografia, o autor construiu uma rotina carregada. Membro da Academia Pernambucana de Letras, consultor da Unesco e cabeça de um grande escritório de advocacia em Recife, Cavalcanti, 62 anos, passou a concentrar o tempo dedicado ao direito em uma janela das 9h às 17h. O resto era dedicado a Fernando Pessoa.

Cavalcanti confessa ter escrito o livro que gostaria de ler. Queria encontrar o homem por trás do gênio e as descrições oferecidas pelos autores dos mais de seis mil livros publicados sobre a obra do poeta nunca o saciaram. ;Eu sempre quis ler um livro que não existia. Octávio Paz, o escritor mexicano, no início de um livro sobre Pessoa, diz que o poeta é sua obra e, em Pessoa, a vida é sua obra e a obra é sua vida. Ele queria se referir à desproporção abissal que cerca a obra de um gênio da mediocridade, da banalidade, de alguém que vive a sua vida num quadrado de quatro quilômetros;, explica. ;Minha sensação é que os autores aceitaram essa tese sem muita visão crítica. E isso é falso porque, por trás da obra, tem um homem que acorda, toma café, se veste, sai para ganhar a vida, tem seus desassossegos. Fui fazendo esse livro como quem compõe um quebra-cabeça.;

Fernando Pessoa ; Uma quase autobiografia
De José Paulo Cavalcanti Filho. Record, 734 páginas. R$ 79,90.

Trecho de Fernando Pessoa ; Uma quase autobiografia, de José Paulo Cavalcanti Filho

;Os amigos se vão e o corpo fica no quarto sem mais ninguém. As freirinhas do hospital, sabedoras da relação com Ophelia Queiroz, ligam e perguntam se ela não quer se despedir do amigo sem que os outros a vejam. Pouco depois Ophelia chega e a levam ao quarto por uma entrada lateral, de serviço. A porta é trancada e os dois ficam sozinhos. ;Velamos as horas que passam.; Então põe a mão sobre a testa do amado e treme, talvez lembrando versos que lera em The mad fiddler: ;Oh, tua mão no meu cabelo, mão de mãe repousa.; Talvez seja só coincidência, mas Almada Nefreiros depois escreveria quase essas mesmas palavras: Mãe! Passa a tua mão sobre a minha cabeça/ E deixa-me morrer com ela sobre mim. Em um poema, Pessoa quase antevira essa cena (trechos):
Deixa que tua mão arrume
O meu cabelo para trás.
Deixa teus olhos sorrirem
Para a inquietude
Dos meus olhos agora
Por um momento teus.
Pareço dormir.
Tudo fracassou.
Todas as esperanças estão mortas.
Todas as alegrias são breves.
Sim deixa tua mão
Dando-me alívio!
O que a vida é agora
Vale tão pouco
Que até a dor parece quebradiça.
Afasta o meu cabelo
Da dor da minha fronte.
O que eu lamento
Jamais veio a acontecer.

Deixa que meu repouso se agite.
Descanso verdadeiro, venha logo!

;The mad fiddler; (; L;inconnue;), Fernando Pessoa

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