Diversão e Arte

Capital paulista ganha dois livros que colorem a periferia da cidade

postado em 23/08/2011 08:52
Desenho da história em quadrinhos Encruzilhada, de Marcelo d'Salete: faces e becos de São Paulo
A capital paulista ganha, em dois lançamentos editoriais, os contornos de uma narrativa gráfica em preto e branco e de uma prosa que colore a periferia de uma sensibilidade que não se vê nos noticiários. São reproduções calorosas de uma cidade que é, ao mesmo tempo, referência de progresso e abismo de desigualdades sociais. O quadrinista Marcelo d;Salete, da Zona Leste, e o poeta e escritor Sérgio Vaz, Zona Sul, cada um a seu modo, reproduzem faces e becos de São Paulo com um olhar de dentro: parecem descrever seus próprios vizinhos, resgatar lembranças ou até registrar as impressões de uma experiência diariamente intensa. A graphic novel Encruzilhada (Barba Negra/Leya) e a coletânea de textos Literatura, pão e poesia (Global) são como flagrantes da vida urbana. E do que ela tem de belo e doloroso.

Marcelo d;Salete foi criado em São Mateus e, quando adolescente, trabalhou como office boy no centro. ;Quando comecei a trabalhar com ilustração e design, acabei circulando muito pela Vila Maria, depois, regiões próximas de Tiradentes. De certa forma, as histórias do livro têm a ver com essa trajetória e com que venho vendo e conhecendo tanto de quadrinhos quanto de São Paulo mais recentemente;, conta o desenhista, que chegou a morar em Brasília no ano passado. Mas uma nova oportunidade de emprego o levou de volta para o Butantã, Zona Oeste. Os quadros de Encruzilhada economizam nos diálogos ; uma herança que vem da paixão pelo cinema de Takeshi Kitano e Alfred Hitchcock; e preenchem os espaços vazios com borrões sombreados, nebulosos: os personagens humanos compõem a paisagem de prédios pálidos, anúncios publicitários e pichações.

;Quis representar as coisas da forma como as vejo;, delimita. Atento aos detalhes, d;Salete modificou a sua observação: se antes via e rascunhava simples esboços, hoje capta imagens com uma câmera fotográfica. ;É mais para a construção visual da história. Para o roteiro, parto de conversas com colegas, familiares, e histórias que me chamam a atenção;, revela. Numa delas, Brother, sobre irmãs que vendem DVDs piratas na calçada, a inspiração veio de uma cena que ele viu com os próprios olhos. Em outras, a existência de moradores de rua excluídos e de pessoas comuns é traçada pelo entrelaçamento com a imaginação.

Sérgio Vaz com o bairro de Taboão da Serra ao fundo: Do bairro

Sérgio Vaz não acredita em arte pela arte. ;Só sou bom escritor se falo da minha aldeia. Sou extremamente engajado e descaradamente panfletário;, ele diz. As crônicas e contos de Literatura, pão e poesia são novidade para ele, mais familiarizado com os versos. Mas o conteúdo ainda é um estrato específico de onde ele vive, em Taboão da Serra, grande São Paulo. ;Sou um cara da periferia, um cara que sempre quis que o bairro fosse um lugar bacana para se viver. Quero escrever contra o racismo, a violência policial, quero falar que os pobres também beijam na boca. Acho que sou um psicólogo das coisas. Quero decifrar o boteco e por que ele está cheio às 10h da manhã, para ver se é porque está cheio de pessoas desempregadas;, acrescenta.

A atitude cidadã é aferrada à comunidade: ele escreve pensando sempre na sua ;quebrada;. E não reclama se disserem que tem ;vista curta;. ;Não consigo imaginar um cara na Inglaterra lendo e entendendo. Mas, como as coisas estão lá hoje em dia, é bem capaz que ele entenda!”, brinca. E reitera: ;Não sei como atingir outras pessoas. Falo de vizinhos, gente da rua de baixo, da rua de cima;. Esses sujeitos vivos, tão próximos a Vaz ; quem sabe frequentadores do sarau da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), criada por ele na Zona Sul ;, amplificam uma expressão cultural que a crueldade das ruas costuma abafar. Mas que grita e vibra nos parágrafos ágeis de Vaz.

Trecho
;A literatura é uma dama triste que atravessa a rua sem olhar para os pedintes, famintos por conhecimento, que se amontoam nas calçadas frias da senzala moderna chamada periferia. Frequenta os casarões, bibliotecas inacessíveis ao olho nu e prateleiras de livrarias que crianças não alcançam com os pés descalços;
Sérgio Vaz, em
Literatura, pão e poesia

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