Diversão e Arte

Biografia de Martin Scorsese chega às livrarias, repleta de fatos pessoais

Ricardo Daehn
postado em 27/11/2011 08:05

Martin Scorsese com os Rolling Stones no tapete vermelho do Festival de Berlim em 2008: estreia do documentário musical Shine a light

Do somatório ; de infância com sete pessoas em três cômodos na periferia nova-iorquina, de ataques de asma (;isoladores de todo mundo;) e de soterramento em religião e moralidade ; vem muito do que seja original no cinema do ítalo-americano Martin Scorsese, 69 anos. Nove anos mais velho, e com autoria em 36 livros, o documentarista e crítico Richard Schickel, que assina o livro Conversas com Scorsese (Cosac Naify), parece um oponente à altura do entrevistado ; sim, porque não se abate nem mesmo ao escutar do interlocutor, que comenta Ilha do medo (2010), um ;não quero nem falar disso porque acho que não aguento mais nenhuma crítica sobre o filme. Desculpe;.


Forjado na precocidade,; aos 6 anos assistiu a Hamlet (Laurence Olivier), e aos 5 já acompanhava fitas neorrealistas ; o diretor em foco, a cada mirada, condiz com os feitos: vivenciou tragédias, desenhou (obsessivamente) na infância, preserva acervo de 3 mil cartazes e de 4 mil filmes. E, mais importante, responde por muitos dos novos clássicos do cinema (a partir dos anos 1970).


Transcrição, no maior volume, do que foi captado para o documentário Scorsese sobre Scorsese (2004), o livro não se atém a glorificar a obra do narrador, que intervém no encontro de ;um toque de graça; para personagens ;de vidas sombrias e limitadas;, como sublinha o autor. Imperfeições do protagonista ; certa vez, interceptado por um cavaleiro tibetano, que categorizou: ;Assisti ao seu filme Nova York, gangues (Gangues de Nova York). Violento, violento. Mas tudo bem. Está na sua natureza; ; povoam as linhas. Desconfiança permanente, um ciclo de megalomania (quando dirigiu Jerry Lewis, em O rei da comédia) e a convivência com ;drogas sem receituário; (como alfineta Schickel) não são lá grandes conquistas.


Na publicação de 528 páginas, dos indícios de decadência (com as demissões dele em Lua de mel de assassinos e Woodstock, além das concessões do problemático Gangues de Nova York), até as ondas de ;renascimento; (com Os bons companheiros), conceitos da rude filosofia de Scorsese entremeiam a leitura. ;O que estou querendo dizer é se você dá a alguém, pode receber uma arma em troco, um tiro; está entre as pérolas do entrevistado, capaz de demarcar um fundamento para as criações dele (;Esta é a minha pergunta na maioria dos meus filmes: ;o que é um homem e o que é um herói?; Vence o mais forte? Ou alguém que faz todo mundo racionalizar as coisas e entender?;);.


Avesso ao rótulo de que a obra se estabeleça na dobradinha gângster e violência, o cineasta crê que esse tipo de produção seja o que ;impressiona mais;. Com o pai ;alinhado; (apenas amigo) a ;uma família do crime;, e criado num ambiente de pessoas que pagavam pecados ;em casa e na rua, não na Igreja;, o diretor tem absoluta consciência de que ;cartazes de filmes vendem sonhos;.


Com as indefectíveis camisas de caubói e o desprezo pelo ridículo culto a celebridades ; ;Para mim, Sunset Boulevard (a rua em Los Angeles) era a metáfora para a espiral de queda da estrela; ;, Scorsese atravessou a década de 1970 multiplicado. ;Nós três ; Harvey (Keitel), Bob (De Niro) e eu ; éramos quase a mesma pessoa, até 1976, 1977;, confessa, sobre a unidade nas investidas da ficção.

No calor das influências
O recorte da carreira formatada por infinitas influências (com os balaustres Elia Kazan e John Cassavetes) congrega o mix entre ;o real e o ficcional;, sem ignorar elementos-chaves pessoais para a filmografia, que bebeu da ;calorosa; mãe, ;muito irônica e engraçada;, por exemplo, em Alice não mora mais aqui (1974). Num rastro de inflamadas consequências, Alice lhe deu certa encrenca junto às feministas. Mas, segundo destrincha Conversas com Scorsese, nada se comparou ao explosivo pressuposto de ;sensações sexuais; no Jesus de A última tentação de Cristo (1988). ;Eu esperava que houvesse uma reação ideológica, mas não fiz por dinheiro;, assinala.


Na trilha de Kundun (1997) e de Vivendo no limite (1999) ; ele reafirma o concreto desejo de representar a ;essência do cristianismo;, em futuro filme batizado de Silêncio. Na retrospectiva pessoal, a trilha de documentários ligados à música faz mais barulho. De Woodstock (1970) salta a sinestesia ; ;Era uma experiência extraordinária porque todo mundo estava, de certa forma, dependendo da boa vontade da pessoa a seu lado;. Privilegiado passageiro da excursão dos Rolling Stones ; montada sob a tralha equivalente a ;uma aldeia medieval; ;, Scorsese, em Shine a light (2008), sem planejamento, dependeu da ;natureza da incontida energia em si;, ;quase primeva;, da banda.


Por vezes desnudado, o biografado entrega curiosidades na longa jornada fílmica. Caminhos perigosos (1973), montado por ele (sem crédito), quase teve que ganhar embalagem afro-americana (em voga, à época), enquanto Taxi driver (1976), que lhe trouxe tensão e depressão, foi veículo para incapacidade pessoal. ;Eu estava mais alerta e atraído por essa nova expressão de sexualidade aberta. De onde eu venho, ela era restrita e reprimida;, admite.


Scorsese é quem sintetiza o tema do recente Os infiltrados ; ;tudo é traição; e, sem sobressaltos, demarca ainda a influência de Vidas amargas (1955) na carreira pelo eterno tema: ;O que um filho deve ao pai em termos de lealdade;. A gênese da violência foi melhor cercada pelo antigo professor (o Padre Príncipe): ;Eu sempre falei pra você (Scorsese): ;sexta-feira santa demais e Páscoa de menos;;.

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