Diversão e Arte

Artigo: A perfeita tradução da Tropicália

Paulo Pestana, Especial para o Correio
postado em 24/06/2012 11:14
Não me venham com polêmicas: Gilberto Gil é o mais eclético dos compositores brasileiros, é o que melhor domina as linguagens da música popular, melhor absorve e recicla influências externas; sempre ligado às suas mais tenras influências, é (ainda hoje) o que mais avança e experimenta. Um artista que não cabe em rótulos.

Para além de tudo isso, ainda é um estupendo cantor, um violonista desconcertante ; dono da mão direita mais inventiva da música brasileira, criador de uma escola própria de violão ; e poeta com nicho de linguagem próprio, como detectou Arnaldo Antunes.

Se o efêmero movimento tropicalista ; que não durou mais que dois invernos ; pregava a ligação do Brasil com o mundo e consigo mesmo, como uma espiral com dois vórtices invertidos, não há mais perfeita tradução para ele do que Gilberto Gil, compositor que parece buscar a sinapse musical perpétua ao conectar permanente e perenemente tantas influências. Mesmo a geleia geral do tropicalismo, no entanto, parece pouco para definir sua ação musical.

Gil é o tropicalista nato, na;ve, primitivista e intuitivo, que nunca precisou do verniz acadêmico para explicar sua música. Ao contrário de Caetano Veloso, Hélio Oiticica e Capinan, que criaram o manifesto estético que rompia com a ditadura do bom gosto, Gil trazia toda a inquietação no sangue, a partir de uma curiosidade musical desmedida. Não que lhe faltasse densidade intelectual para a teoria, mas é que lhe sobra tutano na criação.

Na origem, Luiz Gonzaga ; a influência era tão forte, que o primeiro instrumento de Gil foi uma sanfona. A partir daí, o mundo. Gil nunca foi um pesquisador metódico; é um catalisador, que ouve o galo cantar e incorpora à sua música. Foi assim com os Beatles, que tiveram grande impacto sobre ele e foram absorvidos aos poucos; mais rápido ocorreu com Bob Marley e o reggae, incorporados imediatamente.

E foi aos poucos que surgiu o letrista inspirado. Inicialmente, tímido, tateante em canções de formato tradicional como Felicidade vem depois, a nunca gravada Triste Serenata (onde há um ;plangente violão;, ;maviosas palavras a enlevar corações;, ;sono fagueiro;) e Meu luar, Minhas canções.

Antes mesmo do anúncio tropicalista, no entanto, ele deu os primeiros passos em direção a uma nova linguagem com Louvação, Procissão (a música que Luiz Gonzaga disse que queria ter feito) e, especialmente, Lunik 9.

Já misturando poesia, canção e comentários, houve uma evolução vertiginosa. Sem se deixar sufocar pelos parceiros de então ; nomes como Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Torquato Neto, Capinan, Augusto Boal ; ele marcou posição poética enquanto levava a produção musical a uma esfera superior com o disco Gilberto Gil (1968).

Mistura
Foi um acinte; é sensacional. Com fardão imortal na capa e chapéu sertanejo na contracapa, é o mais tropicalista disco da tropicália, misturando frevo, guitarras e berimbau, iê-iê-iê, folclore manauara (a deliciosa Pega a voga, Cabeludo) e pifano. E contribuições fundamentais: Domingo no parque, Luzia Luluza (cinematográfica história de amor), Ele falava nisso todo dia, entre outras. É também um dos melhores discos dos Mutantes, mesmo que não seja deles.

É curioso que a carreira de Gil tenha deslanchado como uma resposta à Jovem Guarda, movimento que seria mais tarde abraçado pelos tropicalistas. Quando Elis Regina notou que Roberto Carlos e seus súditos estavam ampliando seus domínios, buscou em Gil (entre outros novatos) a resposta para modernizar sua MPB. Gil foi além e engoliu tudo.

O disco Tropicália ou Panis et Circencis, também de 1968, fechou a tampa do movimento numa manifestação coletiva e data de validade definida, até porque logo depois, em 27 de dezembro de 1968, apagaram a luz ; Gil e Caetano foram presos e levados para o quartel de Marechal Deodoro, no Rio de Janeiro.

O disco seguinte, em 1969, já não tinha o mesmo frescor. Não podia ser diferente para uma obra que começou a ser gestada na cadeia e apenas graças ao sargento Juarez que, com a permissão do comandante do quartel, emprestou um violão a Gil. Encarcerado, ele compôs Cérebro eletrônico, Vitrines e Futurível, todas incluídas no disco.

A partir da capa ; que não trazia uma foto do artista, então com a cabeça raspada no quartel ; é uma obra disforme que, apesar dos arranjos de Rogério Duprat, está distante das experiências anteriores. Gil foi proibido de acompanhar a gravação dos arranjos definitivos; estava fora da cadeia, mas ainda preso, sem poder sair de Salvador, onde gravou voz e violão. Ainda assim, alcançou grande sucesso por causa de Aquele abraço, uma canção sobre a repressão, confundida naquele tempo com louvação ufanista.

A tropicália estava morta. Gil embarcaria para Londres ; como se ter ido fosse necessário para voltar ; e, depois de experiências fonográficas que podem ser consideradas um hiato em sua carreira, retomaria a meada com Expresso 2222, um disco mais esotérico, prenúncio de um Gilberto Gil diferente, mas ainda aberto para o mundo, ainda voltado para suas raízes, sempre tropicalista.

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