Diversão e Arte

Em seu primeiro romance, Zuenir Ventura mistura realidade e ficção

Nahima Maciel
postado em 05/07/2012 07:00
Zuenir Ventura volta e meia contava para um amigo que estava ;há três anos; escrevendo um livro de ficção. Contava uma, duas e até três vezes em espaços de um ou dois anos. Quando se deu conta, os ;três anos; se tornaram, na verdade 10. Há uma década, ele estava debruçado sobre essa tal ficção passada em uma cidade do interior fluminense dos anos 1930. Aí, calhou de Ventura contar para o editor Robert Feith, da Alfaguara. Revelou, inocentemente, já ter oito capítulos. Feith, obviamente, quis ler. Ficou combinado que seria ;sem compromisso;. Mas não teve jeito de evitar o ;compromisso;. O editor adorou o esboço de livro e Ventura foi obrigado a tocar o romance. E sentiu um alívio danado quando começou a mergulhar na ficção com a maior liberdade do mundo e voltou com um livro leve, de leitura rápida, mas com uma história bem contada. Sagrada família é entretenimento de qualidade, coisa difícil de fazer segundo o autor.

Cotinha e Leninha, as duas irmãs protagonistas, Douglas e Tony, os respectivos namorados, e dona Nonoca, a mãe castradora das meninas, realmente existiram e fazem parte das memórias de infância do escritor, mas as intrigas amorosas que vivem em Sagrada família é pura invenção. E diversão. Namorar em Florida, a cidade fictícia incrustada na serra fluminense, era praticamente fatal na época descrita pelo menino Manuéu, alter ego assumido de Ventura. Não podia beijar, nem segurar na mão, nem ir ao cinema e muito menos sentar no mesmo banco na praça. Quem fizesse ficava ;malfadada; e isso era um desastre amoroso: a moça nunca mais casava, nunca mais namorava e só encontrava rapazes dispostos a ;se aproveitar;;. Por essas e outras, a viúva Nonoca impunha às filhas regime de quartel.

Trecho de Sagrada família, de Zuenir Ventura


"Amadeu foi o primeiro a chegar à praça. Era um homem magro, altura mediana, cujos cabelos com alguns fios brancos, lisos e repartidos ao meio, lhe davam o ar de um senhor de 50 anos. Elegante, parecia vestido para ir ao Palácio do Catete, onde trabalhava, e não para um passeio matinal numa cidade como Florida, sem essas formalidades. Além do terno escuro de lã, um colete fechado por botões protegia-o do frio extemporâneo daquela manhã.

Procurou um banco onde havia um pouco mais de sol, sentou-se e cruzou as pernas, deixando ver as finas meias de fio de escócia, esticadas e presas a uma liga elástica por uma presilha com colete. Em lugar da gravata, usava um foulard de seda. Tempos mais tarde, ao conhecê-lo, Leninha comentou com a irmã: "Ih, Cotinha, não sei não, mas esse velho;" e deixou no ar uma suspeita que se baseava mais nas roupas elegantes e incomuns do que nos gestos contidos de um gentleman já no terceiro casamento, sem falar nos casos extraconjugais.

Sempre que vinha à cidade, gostava de ficar ali de manhã apreciando o movimento. De onde estava podia ver tudo. No banco ao lado, um velhinho de cachecol enrolado no pescoço cochilava. Na alameda de lá, uma jovem mãe empurrava o carrinho com um bebê agasalhado. No canteiro em frente, crianças barulhentas brincavam, fazendo uma algazarra que o divertia. De repente, uma bola sem direção caiu no seu colo, assustando-o e sujando de poeira o seu colete. Ele tirou o lenço do bolso de cima do paletó, limpou o pó e, sem esconder uma ligeira irritação, devolveu a bola e pediu que as crianças fossem brincar na outra alameda."

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