Diversão e Arte

Escritor Mia Couto conversa com o Correio sobre as influências poéticas

Autor falou sobre a realidade em que o país está imerso após a guerra civil, com episódios que ainda podem ocasionar conflitos

postado em 16/04/2014 07:00

Escritor Mia Couto
De Maputo ao norte de Moçambique, Mia Couto se divide entre as atividades de escritor e o trabalho como biólogo e gestor de empresa que estuda impactos ecológicos. Filho de poeta, Mia aprendeu a se apaixonar pelas coisas que não são visíveis e a encontrar harmonia em pequenos detalhes do mundo. O autor conseguiu, então, transferir para sua escrita as impressões sensíveis de um personagem e testemunha de uma guerra civil que nunca teve fim, de fato. Mia Couto aprendeu a se calar para ouvir as palavras, descobri-las e salvá-las do esquecimento.

Em entrevista ao Correio, o festejado escritor moçambicano ; vencedor, entre outros prêmios, do Camões, em 2013 ; falou sobre a realidade em que o país está imerso após a guerra civil, com episódios que ainda podem ocasionar conflitos. Os contextos político e social do país estão, portanto, presentes na literatura de Mia Couto, que teve a família ameaçada de sequestro em um dos auges da violência em Maputo.

Confira entrevista:

Você é filho de poeta. Seu pai o incentivou a escrever?

De um modo muito sutil, sem que déssemos conta de que acontecia ali alguma mensagem. A paixão que ele tinha pela vida, pelas coisas que não eram visíveis, a busca pela beleza, um modo de estar sem estar completamente; tudo isso era já um incentivo. Ele foi um homem muito feliz, capaz de construir felicidade a partir de pequenos detalhes. Esse olhar ensina-se, sim. Ele nos ensinou a todos nós, seus filhos, esse modo de olhar o mundo. Depois, quando já eu me encontrei no prazer da escrita, ele, então, se apresentou como um companheiro, sem nunca se impor com argumentos de autoridade.

Que autores mais o influenciaram você e o que tem lido atualmente?

Foram os poetas que me marcaram mais. Eu venho da poesia, entendendo que a poesia não é apenas um gênero literário, mas uma filosofia, um modo de saber de mim, dos outros e do mundo. Os poetas moçambicanos, brasileiros e portugueses foram os que mais me influenciaram. Alguns franceses e espanhóis que moravam na estante de nossa casa, esses também me marcaram. Devo mencionar, do Brasil, Manuel Bandeira, Drummond de Andrade, João Cabral Melo e Neto e Hilda Hilst. E um outro que, não se assumindo poeta, levou mais longe o labor poético e que foi João Guimarães Rosa. Dos moçambicanos devo referir José Craveirinha e Rui Knopfli. Dos portugueses, não é possível contornar Fernando Pessoa. Mas Sophia de Mello Breyner foi com quem mais aprendi.

Como biólogo e escritor, você se divide entre a biologia e os livros? De que maneira uma atividade interfere na outra?Inferem uma na outra a ponto de eu não saber onde começa uma e acaba a outra. Da ciência não quero certezas, mas aprender idiomas e sensibilidades para eu poder reconquistar uma familiaridade perdida com outras criaturas que, parecendo distantes, tem uma relação de parentesco com a humanidade. São bichos, são plantas mas possuem afinidades e linguagens que é preciso nós voltarmos a saber. O relato das lendas incluíam esse ritual de iniciação que anuncia o tempo da história nesse outro tempo em que os animais falavam. É o inverso: houve um tempo em que nós escutávamos e entendíamos os idiomas dos bichos.

Você é um dos donos de uma empresa que estuda o impacto ambiental. Como conseguem evitar um quadro de desgaste ecológico?

Fazendo com o desenho de projetos saiba conviver com regras e equilíbrios ecológicos. Não é muito, porque seria necessário todo um quadro diferente em que não se separassem os modos de fazer economia e os modos de o fazer com outra racionalidade que não fosse a ganância do Mercado e do lucro. O que eu faço é muito pouco e sinto que, muitas vezes, é apenas um remendo. Mas também acredito que é preciso uma espécie de Guerra de guerrilha e aproveitar as frestas de um sistema que não é omnipoderoso.

A ciência peca em algum aspecto?

Quando ela é assumida como a resposta única e total. E quando ela deixa de lado as inquietações e se torna funcionária de certezas e de interesses. Nesse caso, ela deixa de ser ciência, abandona a sua missão da busca de resposta mas, sobretudo, de perguntas. Mas a ciência, apesar de tudo isto, continua a ser uma das mais importantes frentes para combater o fundamentalisto religioso, a falsa moralidade construído sobre a ignorância. Não podemos esquecer que mesmo em países ditos evoluídos o preconceito é dominante: é surpreendente que até hoje em nações que levaram o homem à lua não hajam largas porções de gente que nega a evolução e pretende que o seu ensino seja praticado nas escolas.

Como o homem pode se relacionar com o meio ambiente de maneira harmoniosa?

Seria preciso uma mudança radical no nosso modo de pensar. O nosso pensamento já surge viciado à partida, separando-nos da natureza. O meio rural moçambicano não perdeu nunca uma visão mais holística e integrada da humanidade. Não existe em nenhum língua moçambicana de raiz bantu palavra par dizer natureza ou meio ambiente. Isso não é uma menoridade. É um modo de não colocar o Homem no centro. Inicialmente, a ecologia tinha esse potencial de mudança. Mas ela foi absorvida pela sistema, foi domesticada. Hoje contentamo-nos em melhorar a miséria e reduzir os impactos de uma economia que pode levar o planeta à exaustão. Temos que aprender a ser inquilinos e não proprietários da Terra.

Seminário Krisis

;A Sociedade Global e a utopia do desenvolvimento sustentável;, com John Dramani Mahama (Gana), Mia Couto (Moçambique), Carlos Nobre (SP) e Rosana Jatobá (SP) ; Esplanada dos Ministérios. Senhas serão distribuídas antes dos eventos. Entrada franca. Classificação indicativa livre.

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