Diversão e Arte

Bíblia é um grande clássico da literatura mundial

Para o pesquisador e poeta português José Tolentino Mendonça, o livro de cabeceira dos cristãos pode ser considerado um "teatro vivo", com catálogo impressionante de personagens

Diário de Pernambuco
postado em 24/08/2015 11:25

Entre o sagrado e as letrasUma biblioteca inteira concentrada em volume único, com escritos milenares, entre crônicas históricas, cartas, livros de reis, cantigas de amor, peças de folclore, textos proféticos. Para o pesquisador e poeta português José Tolentino Mendonça, antes de ser uma escritura sagrada, a Bíblia é um grande clássico da literatura mundial. Pode ser considerado um "teatro vivo", com catálogo impressionante de personagens. Deve ser lido tanto por crentes quanto não crentes como fonte de conhecimento para a própria formação cultural e capacidade de decifrar o mundo.


Essa leitura, segundo o vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, deve ser tão apaixonada aquela dedicada às obras de Dante, Clarice Lispector ou William Shakespeare. Para facilitar essa visão literária do texto bíblico, José Tolentino lança no Brasil o livro A leitura infinita ; A Bíblia e a sua interpretação (336 páginas, R$ 49,50), fruto de parceria entre a editora Paulinas e a Universidade Católica de Pernambuco. Em entrevista ao Viver, o escritor esclareceu como olhos bem treinados podem gerar novas perspectivas, inclusive gastronômicas, diante do texto bíblico.

"A maneira mais correta de enxergar a Bíblia é como uma biblioteca inteira"

O Senhor afirma que a Bíblia é, antes de tudo, um clássico da literatura mundial. Por quê?
A interface entre a Bíblia e literatura é uma das minhas linhas de investigação. Nós não podemos nos esquecer de que, nas escrituras sagradas, o adjetivo ;sagradas; não deve jamais anular o substantivo ;escrituras;. Ser sagrado não anula o fato de se tratar de um livro e, portanto, é possível lê-lo do ponto de vista literário. Abordá-lo como um clássico da literatura mundial é importante para encontrar um lugar para a Bíblia em nossa cultura, ao invés de enxergá-la apenas como um livro de crentes. Todas as pessoas precisam do conhecimento bíblico, que funciona como espécie de código para o conhecimento da cultura. Sem ele não compreenderíamos a cultura brasileira, nem compreenderíamos a nós próprios.

Na condição de clássico, pode-se identificar influência em livros posteriores?

Esses métodos literários de pesquisa da Bíblia são muito reveladores. Você acaba descobrindo fatos interessantes, como o interesse pelo cristianismo por parte de escritores como Guimarães Rosa e Fernando Pessoa, que tinha uma biblioteca inteira dedicada ao tema. O poeta português lia não só a Bíblia, mas muitos outros livros publicados na sua época, que ele mandava trazer da França e da Inglaterra. Era um intelectual muito engajado com o debate teológico, e isso transparece de maneira muito forte em sua obra. A poesia de Fernando Pessoa não é necessariamente religiosa, mas é muito trabalhada, muito refletida. Por isso é essencial fazer essas pontes entre a Bíblia e a literatura.

Em qual ou em quais gêneros literários ela se encaixaria? Como o leitor deve interpretar metáforas e ensinamentos, se o olhar não for religioso?
A maneira mais correta de enxergar a Bíblia é como uma biblioteca inteira. É um livro de fé, é verdade, mas não apenas isso. Qualquer pessoa, crente ou não crente, deve conhecer para sua formação, sua cultura, para ter ferramentas para a leitura do mundo. É um catálogo impressionante de personagens. É um teatro vivo. Ela deve suscitar uma leitura apaixonada, da mesma maneira como nos dedicamos a ler Dante, Clarice Lispector ou Shakespeare. É necessário aos leitores perceber que suas metáforas são, antes de tudo, literárias, dispositivos da linguagem, sem deixar de anular o papel enquanto livro de fé. Essa leitura, inclusive, pode exercer papéis cruciais na sociedade, como ajudar a combater o seu uso pelos fundamentalistas como um texto de violência. Se olharmos de uma forma plural, compreendermos, ;entrarmos; no texto como um patrimônio da humanidade, se aceitarmos essa abertura, isso vai desarmar a tentação fundamentalista, de se apoderar o texto e fazer dele uma arma contra os outros. O que deve ocorrer é justamente o contrário. É uma escritura para construir pontes que levam ao encontro e à compreensão do outro.

Uma das prerrogativas para usufruir de um clássico literário é compreender o contexto em que foi escrito. Como o senhor situa historicamente o texto bíblico?
É impossível separar o texto bíblico de seu contexto. Aliás, eu diria que ter atenção às condições de produção do texto é indispensável para compreendê-lo. Alguns textos bíblicos foram escritos há seis ou sete mil anos, quando eram criados oralmente e transmitidos pela memória. É um conjunto formado por obras muito heterogêneas. Tem orações, crônicas históricas, livros de reis, cantigas de amor, peças de folclore, textos proféticos, obras de sabedoria para iniciação de jovens na vida e no conhecimento da humanidade, tragédias, apocalipses, cartas. Essa diversidade toda traz a necessidade de iluminar o conteúdo pelo contexto. Essa heterogeneidade vem junto com o DNA bíblico, é a marca essencial do texto. Isso nos pede uma humildade grande, nos pede a capacidade de perceber linguagens e gramáticas diferentes, todas reunidas naquela biblioteca.

Que grandes narrativas históricas de qualidade literária o senhor destacaria?
Para citar somente dois exemplos, cito Cântico dos cânticos, o mais belo poema de amor, erótico, já escrito na humanidade, e também o livro de Jó, um panfleto de protesto, de liberdade, e ao mesmo tempo um livro de oração. O personagem de Jó inspirou muitos romances, personagens do cinema. É um clássico absoluto da humanidade.

O que fazer diante das dificuldades para ler a Bíblia sob o viés literário?

É justamente essa dificuldade com que tento dialogar no livro A leitura infinita. O título, por sinal, é porque não existe somente um caminho possível, mas vários percursos. O leitor tem que ser motivado, apoiado, estimulado, correspondido na sua dificuldade, mas também no seu desejo de buscar aquele texto. Sugiro revisitar pontos importantes e ;entrar; na Bíblia por portas que podem surpreender. Não somente pela porta principal, mas também pela porta da cozinha. Um capítulo do livro é todo dedicado a ;Deus na cozinha;, percebendo como, através da mesa, da alimentação, conseguimos entender imagens e itinerários muito fortes no texto bíblico.

O senhor tem conhecimento do trabalho de estudiosos no Brasil com pesquisas semelhantes, de aproximação entre Bíblia e literatura?
Sim, o Brasil tem uma equipe magnífica de estudiosos da Bíblia, gente muito boa que tem feito trabalho notável. Pessoas como Frei Carlos Mesters, que está à frente de um trabalho de releitura e tradução do texto bíblico junto a comunidades de base, mostrando que é um livro que vai ao encontro de todos os públicos. Outra pessoa é Johan Konings, em Belo Horizonte, que faz um relevante trabalho de tradução da Bíblia e está ligado a múltiplos projetos nessa linha. Ele é um exemplo de pessoas que mostram como é um texto de leitura infinita. Por fim, destaco o biblista Geraldo Dondici, que estuda profetas do antigo testamento, mas dando atenção especial à recepção do leitor.

Para o pesquisador e poeta português José Tolentino Mendonça, o livro de cabeceira dos cristãos pode ser considerado um SAIBA MAIS

José Tolentino Mendonça é mestre em ciências bíblicas e doutor em teologia bíblica.

É professor e vice-reitor na Universidade Católica Portuguesa.

Tem mais de dez livros publicados, entre poesias, ensaios e textos teatrais.

Recebeu prêmios como o Cidade de Lisboa de Poesia, Fundação Inês de Castro e Comendador da Ordem do Infante D. Henrique.

Em 2012, foi considerado pelo Jornal Expresso como um dos 100 portugueses mais influentes do ano.

Desde 2011 é consultor do Conselho Pontifício da Cultura, ligado ao Vaticano.

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