Diversão e Arte

O dilema de ir além dos zumbis em Fear the walking dead

Série derivada de The walking dead pode apostar nos dramas humanos para chegar ao sucesso da trama original

Diário de Pernambuco
postado em 24/08/2015 16:07

Cena do primeiro episódio da série
Reconstruir o universo apocalíptico já explorado à exaustão em The walking dead soa como tarefa hercúlea e arriscada para Fear the walking dead, a série derivada criada pelo canal AMC para explicar como os zumbis dominaram o planeta depois de uma epidemia em massa. O motivo está na cara: a atração original inventada a partir dos quadrinhos de Robert Kirkman triunfou de forma inegável na televisão ao despejar milhões de mortos-vivos em busca de carne fresca e acompanhar parcos humanos à procura do porto seguro inexistente em meio ao caos de canibalismo, sangue e vírus. A combinação de suspense, efeitos bem aplicados na criação das criaturas e personagens moralmente complexos produziu uma trama com identidade única, alimentada a cada capítulo pela incerteza da sobrevivência no momento seguinte.

[SAIBAMAIS]Daí, a dificuldade óbvia de Fear the walking dead de retomar o tema mesmo distante geograficamente (a série derivada da AMC derivada se passa em Los Angeles enquanto a original é na Geórgia e na Virgínia) e no tempo (a narrativa retorna ao ponto zero da infecção genocida, futuro retratado na prima consagrada): qualquer investida na modificação do curso dos acontecimentos ou até no comportamento dos zumbis será passível de comparação com o seriado original. E a memória do bando de Rick Grimes, o mocinho controvertido de The walking dead, tende a ganhar a preferência do público sobre uma trama ainda em construção.

Mas o risco assumido pela nova série é, paradoxalmente, a possibilidade de ela se consolidar junto à audiência. Se os zumbis apresentam comportamento semelhante, mesmo descontadas as peculiaridades do início da pandemia, e sabe-se o desfecho na guerra sanguinolenta contra a humanidade, resta aos criadores apostar na estratégia a partir da qual a atração pioneira atravessou cinco temporadas com frisson ininterrupto: a exploração das falhas do caráter humano, a arma mais eficaz para desequilibrar a luta entre vivos e mortos.

O sucesso de The walking dead passa pela capacidade de fazer o enredo extrapolar os ataques dos zumbis e focar a corrosão gradativa do próprio homem pressionado por situações extremas, de vida e morte. Amedrontados pela possibilidade de serem devorados pelas criaturas e aparentemente livres das regras de convívio social para combatê-las, eles desferem toda sorte de atos bárbaros contra os semelhantes: mentem, roubam, matam, traem, subjugam e sacrificam colegas, desconhecidos, familiares sob pretexto de salvar a própria pele. A decomposição humana é o traço mais forte na iminência do destino trágico - e ela é evidenciada na mudança contínua dos aspectos dos sobreviventes, cada vez mais desconfiados, intolerantes, agressivos, mortais.

Série derivada de The walking dead pode apostar nos dramas humanos para chegar ao sucesso da trama originalEm Fear the walking dead, há um aceno para abordagem parecida, sobretudo a partir do desenho de uma sociedade contaminada por relações humanas tão frágeis quanto corriqueiras: um pai ausente de convívio do filho e envolvido na ajuda ao enteado (um garoto desacreditado por ser usuário de drogas), a mãe distante dos filhos por dedicação ao trabalho e ao namorado novo e rejeitado por eles, a filha presa ao próprio mundo de intolerância.

O ambiente reforça a sensação de desarranjo social, com uma escola equipada de detectores de metais para revistar os alunos e o som intermitente de sirene policial a indicar um perigo constante. Personagens e sociedade, à primeira vista, aparecem controvertidos e propícios a protagonizarem experiências moral e eticamente questionáveis - basta ver a identidade dupla de um traficante no primeiro episódio, entre a máscara de bom garoto e a liderança no mundo do crime.

Embora com a segunda temporada já confirmada, Fear tem seis capítulos para mostrar o potencial de cativar a audiência fidelizada ao universo da trama original enquanto cria um caminho próprio, como fez Better call Saul (AMC/Netflix), derivada da premiada Breaking bad (AMC). O elenco reúne figuras já conhecidas do cinema e da televisão, como Kim Dickens (Garota exemplar), Cliff Curtis (Os últimos cavaleiros), Frank Dilliane (Harry Potter), Alycia Debnam-Carey (No olho do tornado) e Elizabeth Rodrigues (Orange is the new black). Juntos, eles devem saciar a curiosidade do público sobre a travessia da humanidade do princípio da infecção zumbi até a quase completa derrocada dos homens em um futuro próximo. Não sem antes, espera-se, proporcionar momentos em torno dos quais a a chaga da desumanidade pode se tornar a principal ameaça para quem deseja continuar vivo.

Assista ao trailer:

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