Diversão e Arte

Coleção de fitas gravadas na casa da pianista Neusa França guarda tesouros

São mais de 540 registros de saraus e encontros, que revelam preciosidades nacionais

Nahima Maciel
postado em 07/08/2016 07:30
O acervo de Neusa França tem 340 fitas K7 e 45 rolos
Os saraus da casa de Neusa e Oswaldo França começavam às 20h de sexta-feira e se estendiam até as 9h do sábado. Quem aparecia por lá só saía quando os donos da casa fechavam a tampa do piano e os músicos guardavam os instrumentos. O café da manhã era servido e, finalmente, o prédio da Visconde de Pirajá, em Ipanema, podia adormecer.

O movimento e o barulho não eram problemas para os moradores, que se divertiam ao cruzar gente como Lamartine Babo, Baden Powell e Jacob do Bandolim no elevador. Quando chegou em Brasília, o casal passou a reproduzir os saraus no primeiro andar de um apartamento na 305 Sul. E Oswaldo registrava tudo. O resultado é um acervo de mais de quatro décadas de música gravada em fitas K7 e de rolo que agora começa a estar disponível na internet graças à obsessão do pesquisador e pianista Alexandre Dias. São horas e horas de gravações inéditas e, até então, desconhecidas, hoje guardadas em um depósito climatizado de Brasília.

Neusa gostava de gente e de música. Oswaldo acompanhava os gostos da mulher e somava a eles uma certa obsessão pelo registro. Assim, não havia recital na casa dos França que não fosse gravado. ;O Jacob sempre dizia ;o que toco aqui é muito melhor que lá fora;;, lembra Magda França, 72 anos, filha mais velha do casal. ;Isso acontecia porque era informal, os músicos não ficavam nervosos e todo mundo que estava ali estava interessado em música. Quando alguém começava a tocar, fazia-se um silêncio sepulcral em respeito ao músico.;

Pixinguinha
Neusa e Oswaldo cultivavam um círculo seleto de amigos e pela sala da casa deles passaram Jacob do Bandolim e o Época de Ouro, Baden Powell, Lamartine Babo, Magdalena Tagliaferro, Claudio Santoro, Francisco Mignone e Glauco Vianna, só para citar alguns nomes que aparecem nas anotações que acompanham as fitas. ;Às vezes, o Jacob trazia também o Pixinguinha. Tinha sempre muita gente;, conta Magda.

Metódico, Oswaldo anotava nomes e peças executadas conforme as faixas. E ia guardando. Os saraus no apartamento do Rio, na década de 1950, reuniam a nata da música na cidade. Em 1959, o casal resolveu se mudar para Brasília. Oswaldo era procurador do INSS e precisava acompanhar a transferência da capital. ;Quando Jacob vinha do Rio, mamãe chamava mais gente, tinha o Avena de Castro também. Depois começou a vir o (Claudio) Santoro, os músicos começaram a ir para Brasília e se formou um grupo novo.;

Há 10 anos, Alexandre Dias foi procurado por Neusa e começou a organizar o acervo. Obcecado pela história do piano no Brasil e fundador do Instituto Piano Brasileiro, ele decidiu que o material precisava ser digitalizado para não se perder. Quando a pianista morreu, em março deste ano, Dias conseguiu o aval da família para continuar o trabalho.

Os saraus são um reflexo da abertura musical de Neusa, e as gravações constituem um acervo precioso. Em uma fita de quase 40 minutos, Francisco Mignone e a esposa, Maria Josephina, tocam uma sequência de choros de Ernesto Nazareth nos dois pianos que ocupavam a sala do apartamento de Neusa. Em outra, datada de 1959, ainda na casa da Visconde de Pirajá, no Rio, Jacob do Bandolim toca uma série de choros acompanhado de Avena de Castro, das pianistas Tia Amélia e Maria Alice Saraiva e do pianista cego italiano Alberto Colombo, no Rio para participar da semifinal do 2; Concurso Internacional de Piano. São quase duas horas de música ininterrupta.

Jacob era figura frequente na casa de Neusa e a presença constante em Brasília facilitava as participações nos saraus. Em uma fita de quatro horas, o bandolinista toca Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros, Chico Buarque, Formiga e até Chopin, sempre acompanhado do Época de Ouro. Era novembro de 1967 e tudo acontecia em uma sala do primeiro andar de um bloco da 305 Sul.

Na fita, a voz de Jacob orienta a entrada dos músicos enquanto toca o bandolim. Parte desse material faz parte hoje do acervo do Instituto Jacob do Bandolim porque o próprio Oswaldo fez uma edição e deu de presente ao bandolinista, mas a fita completa estava inédita até Dias disponibilizá-la na internet. Jacob, inclusive, faz brincadeiras com Neusa e demonstra a intimidade com a casa. Ao introduzir Mariposa de luz, de autoria da pianista, ele brinca: ;Essa você não conhece;. E ela responde: ;Não me mate, não me mate;.

Recitais
Datada de 1957, quando o casal ainda morava no Rio, outra fita traz a voz de Lamartine Babo, muito empenhado em exaltar as qualidades do pianista e compositor Eduardo Souto. São quase 30 minutos de um depoimento da relação de amizade e aprendizado com Souto. Baden Powell também aparece em uma gravação de 15 minutos. O então jovem violonista de 22 anos interpreta ao violão solo Serenata do adeus (Vinícius de Moraes), Na baixa do sapateiro (Ary Barroso) e duas composições próprias, sendo uma Insônia e a outra não identificada. Em outro registro, Claudio Santoro toca seus próprios prelúdios em uma interpretação à vontade e acompanhada de reações aos comentários de Neusa.

Além dos saraus, Oswaldo gostava de gravar concertos e recitais. Na coleção de fitas, há um registro de uma apresentação de Magdalena Tagliaferro na Escola de Música em 1977 e outra ao lado da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro regida pelo próprio Santoro. Nesta última, a pianista interpreta o Concerto n; 20, de Mozart. Nelson Freire também está nas fitas. O nome mais famoso do piano brasileiro contemporâneo toca o Concerto n; 4, de Beethoven, sob regência de Claudio Santoro. De bis, Freire faz o Prelúdio n; 12, de Debussy.

Na ânsia de digitalizar o material para que não se perca, Dias nunca havia parado para contar quantas fitas tem exatamente. Fez isso na semana passada e chegou a um número exato: 340 K7 e 45 fitas-rolo. Ele quer digitalizar o material o mais rápido possível para que possa ficar acessível. Para isso, criou o Acervo Neusa França no canal Instituto Piano Brasileiro, no YouTube. Agora, além das fitas de áudio, vai disponibilizar também VHS gravadas durante os saraus na casa da pianista. O ineditismo move o pesquisador e o ajuda a identificar os tesouros do acervo. ;Quero gerar conteúdo partindo de fontes que gerem coisas novas e não que repliquem;, avisa.


Pianista erudita
Neusa começou a carreira de pianista no Rio de Janeiro, onde nasceu. Foi aluna e assistente de Magdalena Tagliaferro, era formada em piano erudito, mas tinha paixão pela música popular brasileira e convivia com os protagonistas da efervescência musical da capital carioca da primeira metade do século 20. Aos três filhos, ela explicava que não existe música erudita nem popular, e sim música boa. No final de 1959, desembarcou em Brasília para acompanhar o marido. Fez concurso para a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional (OSTNCS) e para a Fundação Educacional, deu aulas no Caseb, participou da criação da Escola de Música de Brasília (EMB) e escreveu o hino da cidade.

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