Diversão e Arte

Companhias investem na desconstrução de paradigmas e novos espaços de palco

Em um único dia, o festival leva apresentações para o Plano Piloto, Ceilândia e Taguatinga, entre teatros e espaços não convencionais, como a boate Star Night e a Galeria Athos Bulcão

Nahima Maciel , Isabella de Andrade - Especial para o Correio
postado em 30/08/2016 07:31
BR Trans, Coletivo artístico As Travestidas, Ceará
O festival internacional de teatro Cena Contemporânea trouxe inúmeros grupos e artistas internacionais para a capital na última semana e, nesta terça-feira, quem toma conta dos palcos e espaços alternativos de Brasília são as produções nacionais. Entre os espetáculos estão o inovador BR Trans, do coletivo artístico As Travestidas (CE); De carne e concreto, da Anti Status Quo Companhia de Dança (DF); Kassandra, da Cia. La Vaca (SC); Laio e Críspido, da Aquela Companhia de Teatro (RJ); O filho, do Teatro da Vertigem (SP) e Naufragé(s), do Teatro de Açúcar (Brasil/França). Em um único dia, o festival leva apresentações para o Plano Piloto, Ceilândia e Taguatinga, entre teatros e espaços não convencionais, como a boate Star Night e a Galeria Athos Bulcão.

Representando a nova safra do teatro brasiliense, o Teatro de Açúcar, criado em 2007, faz a estreia de seu nono espetáculo, Naufragé(s). A companhia, que se apresenta como um núcleo de pesquisa e produção de espetáculos com dramaturgia original, fez a atual produção em parceria com o Centro Dramático Nacional Francês La Comédie de Saint-Étienne.

[SAIBAMAIS]O período de residência criativa do grupo teve início em 2016 e passou pela Franca e Espanha. Gabriel F., ator da companhia e autor da dramaturgia atual, conta que o trabalho deu seus primeiros passaos há duas edições do Cena Contemporânea, quando o diretor da Comédie assistiu ao espetáculo Adaptação e convidou o grupo para desenvolver um trabalho em conjunto.

A pré-estreia de Naufragé(s) foi feita em francês para os integrantes da companhia francesa e, no último mês, o texto foi trabalhado e traduzido para o português antes de ganhar sua estreia no festival. A peça conta a história de um artista que usa a ficção para melhorar a própria biografia. Através da criação de um monólogo, ele decide contar a mais bela história de amor que o mundo jamais conheceu: a que ele mesmo viveu.

Gabriel F. conta que o espetáculo parte da reflexão entre os limites que permeiam ficção e realidade, entre o real e o personagem. ;Criei a figura de um autor personagem que se chama Gabriel, como eu. Seria quase a caricatura de um personagem criado com base na realidade, quase como se fosse eu mesmo a tentar criar este espetáculo. É uma ficção, mas faço uma brincadeira com essas conexões entre o real;, conta o ator e autor.

A montagem ganhou versão em dois idiomas e o ator conta que a experiência foi difícil e de intenso aprendizado. ;Eu estudei e aprendi um novo idioma praticamente para o espetáculo, meu contato com o francês é bem recente. A ligação com o centro dramático da França foi uma experiência muito nova e enriquecedora para toda a companhia;, afirma Gabriel. Enquanto isso, Gaspard Liberelle, da Comédie de Saint-Étienne, já falava espanhol e fez uma imersão no Brasil para se adaptar ao português. A estreia oficial da produção será na França e a previsão é de que ela retorne a Brasília no segundo semestre de 2017.

Conexão

O ator brasiliense, frequentador assíduo das apresentações teatrais que se espalham pela cidade, lembra que uma das principais preocupações do Teatro de Açúcar é atrair um público cada vez maior e mais diversificado para os teatros da capital, ampliando o alcance das criações locais. ;A gente sempre teve essa filosofia de tentar fazer um trabalho artístico de qualidade e, ao mesmo tempo, acessível ao público de maneira geral. Tentamos criar espetáculos em que a acessibilidade à linguagem artística se aproxime dos espectadores. Tratamos de temas complexos enquanto tentamos aliar o conteúdo das criações a um ambiente agradável;, conta o ator.

Gabriel destaca que em alguns países, como a França, onde o grupo fez sua última residência artística, existe uma forte cultura de frequentar os teatros. O ator e dramaturgo acredita que para expandir o núcleo que frequenta as produções brasilienses estão em jogo vários fatores, entre eles, as políticas públicas de incentivo à cultura. Entre os pontos levantados estão o apoio econômico, para que os ingressos possam ser vendidos a preços acessíveis, contemplando um número maior da população e possibilitando o acesso ao teatro, importante espaço de reflexão.

Vale lembrar que, em 2016, o Cena Contemporânea alcançou o maior número de regiões do DF entre suas 17 edições, com apresentações que acontecem entre Plano Piloto, Ceilândia, Gama, Taguatinga, Varjão, Samambaia, Cidade Estrutural e Museu Nacional de Brasília. A ideia é promover a ocupação cultural da cidade.

Misturas

A dança contemporânea se mostra cada vez mais diversa, com a possibilidade de diálogo e conexão com o teatro, performance, artes visuais, circo e outras manifestações artísticas. O espetáculo De carne e concreto ; uma instalação coreográfica, da Anti Status Quo Companhia de Dança é um claro exemplo das múltiplas possibilidades do gênero. O grupo brasiliense é um dos representantes da atual dança contemporânea da cidade e levará ao espaço da Galeria Athos Bulcão o trabalho que discute a condição urbana e a vida em coletividade.

Criadora do grupo, a coreógrafa Luciana Lara conta que a companhia ainda trabalha e ensaia quatro horas por dia, cinco vezes por semana, representando um das exceções dos grupos que conseguem se manter no DF. ;Neste espetáculo, a pesquisa de movimento não se inspira em nenhum estilo de dança, mas nas ações e nos comportamentos sociais que vemos na sociedade urbana de hoje. Toda a pesquisa corporal foi feita a partir da observação e análise de como um coletivo, um grupo de pessoas, uma sociedade, se comporta nas cidades, pois o trabalho é sobre a relação do corpo com este espaço;, conta Luciana.

Tempo de relações descartáveis

Quando Franz Kafka escreveu Carta ao pai, em 1919, as relações familiares eram marcadas por uma postura patriarcal e um censo de coesão a qualquer preço. A figura do pai era central e toda a dinâmica familiar girava em torno dele. Filhos obedeciam ao que era determinado pelos pais e estes decidiam sobre o futuro da prole. Hermann, pai de Kafka, queria ver o filho trabalhando na fábrica de cimento montada para sustentar o futuro da família. Kafka queria escrever. E mergulhou num mar de conflitos por conta da pressão paterna. Pensando sobre a carta nunca enviada, Eliana Monteiro, integrante do Teatro da Vertigem desde 1998, se deu conta do quanto o texto de Kafka parecia datado em um tempo de relações descartáveis e superficiais e pediu ao dramaturgo Alexandre dal Farra que produzisse uma peça inspirada na carta do escritor tcheco. O resultado foi O filho, em cartaz a partir de hoje como parte da programação do Cena Contemporânea.

O filho, Teatro da Vertigem, São Paulo
Na peça, Bruno é um menino simples e ingênuo que sai em busca de um pai desconhecido. Ao encontrá-lo, se depara com um homem frívolo, cujas relações com prostituas revelam a fragilidade dos afetos. Bruno quer aprender e precisa se submeter ao mundo do pai, do qual emerge uma combinação violenta de sexo e descartes. ;A Carta ao pai foi o disparador;, explica Eliana. ;Eu queria saber como seria escrever uma carta ao pai que não fosse datada. Ficou muito forte para a gente esse descarte da família, essa coisa de ter filhos sem consequências. Hoje é tudo muito fluido, se não deu certo tudo bem, você não tem tanto compromisso com a maternidade ou a paternidade. E não tem mais essa figura central do pai.;

O texto de Dal Farra é muito diferente daquele produzido por Kafka no início do século 20. ;É uma escrita mais ácida, mais literal, com questões muito diretas e de maneira metafórica;, conta Guilherme Bonfanti, diretor de luz de O filho. As locações do Teatro da Vertigem nunca são espaços convencionais. Faz parte da experimentação característica do grupo a escolha de locais nunca usados para montagens de teatro e, em Brasília, não foi diferente: a peça ocupa um galpão de uma empresa em Taguatinga. ;A gente sempre trabalha com site specific e apropriação de espaços. A gente sempre busca um lugar que tenha relação com o que queremos construir com o espetáculo;, avisa Bonfanti. ;Esse lugar é cheio de motéis e prostitutas em volta. Conceitualmente, ficou muito mais forte.;

Lembrança

Construído com materiais de descarte, especialmente móveis, o cenário impregnado de memórias de desconhecidos faz parte do processo de criação do Vertigem. Para Eliana, era importante ainda que o lugar tivesse uma ligação com o trabalho. Além do texto de Kafka, a diretora também buscou na própria história pessoal alguns dos elementos presentes em O filho. A lembrança de um pai cujo trabalho se confundia com a vida familiar foi essencial para a diretora estabelecer as conexões entre Bruno e o pai. ;É uma peça, a princípio, muito realista. A gente vai criando metáforas para a encenação;, diz Eliana, que enfatiza a importância do processo colaborativo na montagem. ;A princípio, o que foi disparador para mim foi a relação entre o público e o privado no ambiente familiar.;

O filho marca os 10 anos de patrocínio da Petrobras para o Teatro da Vertigem. Graças ao apoio, a companhia pode se instalar em uma sede, em São Paulo, e manter uma pesquisa experimental constante. ;Isso mudou a nossa vida, ainda mais para um trabalho de experimentação, que não tem retorno. Os grandes investidores da cultura não querem saber de nós;, aponta Bonfanti. Para apresentar O filho, o grupo escolheu cidades onde nunca havia estado e a peça já passou por Manaus antes de vir a Brasília.

Programação


Naufragé(s), Teatro de Açúcar, França/Brasil
Hoje e amanhã, às 19h, Teatro Funarte Plínio Marcos. R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada). Classificação Indicativa: 14 anos. Duração: aproximadamente 90 min

O filho, Teatro da Vertigem, São Paulo
Hoje e 2 de setembro, às 20h, 03 e 04 de setembro, às 17h e 20h. Galpão Marc System ; Taguatinga. R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada). *Vendas no local: somente em cartões de crédito e débito. Classificação Indicativa: 18 anos Duração: 90 min

BR Trans, Coletivo As Travestidas, Ceará
Hoje e amanhã, às 20h, Teatro Sesc Newton Rossi ; Ceilândia. Entrada Franca. Classificação Indicativa: 16 anos. Duração: 80 min

Laio e Crísipo, Aquela companhia de teatro, Rio de Janeiro
Hoje, às 21h, Teatro Sesc Garagem. R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada). Classificação Indicativa: 16 anos. Duração: 80 min. As sessões de Laio e Crísipo contarão com audiodescrição.

De carne e concreto, Anti Status Quo companhia de dança, Distrito Federal
Hoje e amanhã, às 21h, Galeria Athos Bulcão. R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada). Classificação Indicativa: 18 anos. Duração: 120 min

Kassandra, Cia. la Vaca, Santa Catarina
Hoje e amanhã, às 21h, Boate Star Night. R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada). Classificação Indicativa: 18 anos. Duração: 60 min

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