Diversão e Arte

Em entrevista, Rogéria revive cinco décadas de carreira como transformista

A atriz relembrou a transformação de Astolfo em Rogéria e falou sobre representatividade trans

postado em 30/10/2016 07:30
Em 1973, Rogéria retorna deslumbrante ao Brasil
Rio de Janeiro ;
Antes de Rogéria, veio Astolfo Barroso Pinto há 73 anos. Mas não demorou muito tempo para que Astolfo se tornasse "o travesti da família brasileira". Título cunhado pela própria Rogéria (que utiliza o gênero masculino ao se proclamar travesti). E ela tem razão. Difícil elencarmos os motivos, mas Rogéria não oferece um relato de violência e humilhação na jornada pessoal e artística. Relatos injustos e infelizes mas tão comuns àqueles e àquelas que se aventuram pela performance de gênero, pelo transformismo ou, simplesmente, pela própria sexualidade. Pois Rogéria foi acolhida pelo entretenimento e pela família brasileira. E a real surpresa talvez seja que ela encarnou o sexo oposto há cinco décadas, quando poucos tinham coragem de fazê-lo.

O bebê Astolfo;Talvez tenha sido o apoio da minha família. Mas tive um histórico diferente, de acolhimento. O que não faz o menor sentido, já que o meu depoimento deveria ser idêntico ao de todos. E não o oposto;, diz logo no começo da entrevista com o Correio, no restaurante La Fiorentina, local boêmio da noite do Rio de Janeiro que fez questão de escolher. Talvez por frequentá-lo há tantos anos. Talvez pela foto enorme do espetáculo O musical, estrelado pela própria.

Pois ali estava ela, exuberante, para falar sobre a recém-lançada biografia Rogéria ; Uma mulher e mais um pouco, do amigo Marcio Paschoal, que acompanhou a conversa. E a atriz transformista pouco mudou. Em vez de refutar polêmicas ou abafar opiniões, ela faz questão de reforçar o que pensa: ;Há quem queira que eu me livre de Astolfo. Jamais o farei. Morro de orgulho dele e adoro esse lado homem. Por isso nunca fiz operação;.

E transitando entre Astolfo e Rogéria, ela se transformou em uma figura icônica. E sobram histórias. Rogéria maquiou Fernanda Montenegro e Dalva de Oliveira. Trabalhou com Carlos Machado, Bibi Ferreira e, embora fosse vista como homem por muitos, interpretou papéis femininos marcantes. O título da biografia faz jus à figura. De fato, Rogéria é uma mulher e mais um pouco.

Ponto a ponto // Rogéria

A atriz relembrou a transformação de Astolfo em Rogéria e falou sobre representatividade transNasce a mulher
A mulher veio porque o cabelo cresceu. Cabelo esse herdado do meu pai, porque meu pai que tinha essa juba. Então, eu me vi com esse cabelão, magra, com uma amiga me dando todas as roupas dela.... e eu aceitando (risos). Quando o cabelo cresceu foi uma coisa, assim, incrível. Tudo isso em Paris, aos 30 anos. Aos 30 não, 20 e poucos. Descobri que eu era ascendente em leão e que tinha que ser loira mesmo. Mas tive um acidente com um cabeleireiro que escureceu meu cabelo. Quebrou tudo. Fui ao barbeiro, mandei cortar ;Jane Fonda;, emagreci. Seis meses depois, veio a mulher. Eu já tinha mão de mulher, nunca fui grande, andava feito mulher. Antes de o cabelo crescer, eu já estava me sentindo fêmea, mas quando ele veio foi um escândalo.

Começo da carreira
Tudo começa com Fernanda Montenegro. Eu a maquiava desde cedo. Sempre me envolvi com gente talentosa. Eu não posso reclamar. Eu me lembro que logo, em 1967, eu já estava desfilando e ainda não tinha ido para Paris. Fui a rainha dos travestis e fui saudada com todo carinho pela Avenida Atlântica, em Copacabana. Olha que luxo!

Septuagenária
Eu me sinto muito bem sendo essa figura aos 73 anos. Uma figura que veio do show business. Um dia desses, um menino me perguntou quanto eu pagava para estar nas mídias. Eu ia me revoltar mas depois eu falei assim, para mim mesma: ;Não se revolte, tá louca?;. E, então, me dei conta: ;Quer dizer que eu sigo na mídia?;. Eu não tenho essa pretensão de dizer que estou na mídia. Eu acho cafonérrimo quando uma pessoa conhecida começa a falar que é famosa.

Homem ou mulher?
Há uma mulher aqui, mas sou homem sim. Fui eu quem tive que me moldar em Rogéria. Eu tenho uma história para contar. O nome Astolfo veio de meu avô, e sempre tive muito orgulho desse nome. A outra opção era Edmundo, o que não teria dado certo, né?! Eu sou feliz com a minha trajetória desde criança. Sou gay, sou mariquinha. Mas fui eu que bati nos garotos todos! (risos) Eu era o bullying! A porrada quem dava era eu. Eu era Cleópatra. Eu tinha uma certa ascendência sobre eles. Na hora de dar porrada, eu metia a mão. Quando eu não podia, eu chamava o meu irmão se o garoto fosse maior.

Infância
Eu tive uma sorte fantástica de ser artista, de ter uma mãe maravilhosa, uma família acolhedora. O pessoal logo compreendeu essa verve artística e recebi todo apoio em casa. Eu não tive essa jornada de chegar arrebentada em casa, de levar dedo na cara, de ser escorraçada, que tantos carregam na pele. Há quem me cobre isso, inclusive, há quem tenta me deslegitimar por eu nunca ter apanhado, como se eu tivesse que pedir desculpa por ter tido uma trajetória menos violenta. Mas foi assim que as coisas aconteceram.

Representatividade
Recebo muito carinho e amor da comunidade LGBT e tento ao máximo me aproximar deles, mas muitas travestis, trans e gays dizem que não as represento, que eu não integro a militância. Mas, que militância, porra? Eu nem respondo, porque se hoje elas estão tendo essa oportunidade, o caminho foi aberto por mim. Desde 1964, estou no show bussiness fazendo sucesso. No fundo, acho um pouco de despeito, sabe? Eu fui o primeiro homem no mundo a fazer uma avó e uma mãe na novela das 18h! Dei tanta porrada nos garotos. Isso é bixa que quer aparecer em cima de mim (risos). Como eu vou me engajar? Estou há cinco décadas engajada, quando ninguém estava. Vocês que chegaram depois e pegaram meu posto. Eu sempre achei que já sendo Rogéria, já me vestindo de mulher, e sendo recebido pela sociedade da maneira que fui estava muito bom. A rainha dos travestis na Atlântica continua sendo eu!

* O repórter viajou a convite da editora Sextante

A atriz relembrou a transformação de Astolfo em Rogéria e falou sobre representatividade transRogéria ; Uma mulher e mais um pouco
De Marcio Paschoal. Editora Sextante. 240 páginas. Preço médio: R$ 45.

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