Diversão e Arte

Exposição sobre Cícero Dias apresenta a obra do pintor à cidade

Na passagem dos 95 anos da Semana de Arte Moderna, retrospectiva no CCBB reafirma o artista pernambucano na condição de grande pintor modernista ao lado de Di Cavalcanti e de Portinari

Vladimir Carvalho - Especial para o Correio
postado em 18/02/2017 07:00

Exposição sobre Cícero Dias está no CCBB

Se vivo fosse, Oscar Niemeyer seria o primeiro a se interessar e prestigiaria a alentada retrospectiva do pintor Cícero Dias, que em boa hora se inaugurou no Centro Cultural Banco do Brasil ; CCBB e que circulará também pelo Rio de Janeiro e por São Paulo. A primazia foi suprema honra para Brasília, que tem assim a oportunidade de acolher e apreciar esta que será uma das mais completas mostras da consagrada obra do pintor pernambucano.

Não sem razão lembramos aqui que o nome do grão-mestre da arquitetura brasileira, em face da presença da pintura de Cícero Dias em nossa cidade, porque nasceram no mesmo e remoto ano de 1907 e, se ainda estivessem entre nós, teriam alcançado a casa dos 110 anos de idade. Mas esse é só um aspecto das circunstâncias que ligam os destinos dessas duas extraordinárias personalidades. Acresce que ambos os artistas irromperam na cena brasileira quando viveram intensamente a aventurosa experiência do modernismo no Brasil, seguindo eles o rastro luminoso deixado pela Semana de Arte Moderna de 1922.

Os dois se cruzaram nos corredores ou ombrearam, quem sabe, nas salas de aula e ateliês da vetusta Escola Nacional de Belas Artes, nos primeiros e trepidantes anos da década de 1930. E nesse ponto registramos um fato que remanesce do contexto histórico da cultura brasileira e que resulta, por sua vez, nesse evento colossal da nossa nacionalidade que é a concepção e construção de Brasília. É um fator providencial que atende pelo nome de Lucio Costa. Sendo o inspirado e notório autor do projeto urbanístico da nova capital, foi ele também o decisivo incentivador daquele que seria o seu genial parceiro e foi igualmente quem, por vias transversas, partejou o aparecimento de Cícero Dias como pintor.

Este, já picado pelo vírus da pintura, havia abandonado o curso de arquitetura na Escola de Belas Artes, ao tempo dirigida justamente por Lucio Costa, e, em 1931, assiste perplexo, mas feliz, a aceitação do seu impactante painel chamado ;Eu vi o mundo...ele começava no Recife;. Responsável pelo Salão Nacional de forte tradição acadêmica, Lucio assume uma atitude renovadora e, enfrentando bravamente os protestos dos velhos e superados mestres, escancara as portas e recebe a rumorosa horda dos jovens modernistas no Salão.

Alumbramento

Mário de Andrade foi o primeiro a gritar o seu entusiasmo e, do Rio, escreveu alumbrado a Tarsila do Amaral uma carta em que traduzia o seu espanto, afirmando que era tamanho o sucesso que as paredes do Salão pareciam que iam rachar ao peso do genial painel. As portas se abriam à carreira do Cícero, com seu lirismo, sua sensualidade, que Gilberto Freyre apelidou de ;surnudismo; em cotejo com o surrealismo e com as inéditas cores de um Pernambuco profundo, perpetuamente mantidas na paleta de Cícero.

Mas houve um segundo Mário nessa história que foi longa série de eventos, às vezes rumorosa, mas sempre exitosa na vida do menino do engenho Jundiá. Em 1948 ; portanto mais de 10 anos depois de Cícero partir para extensa e definitiva estada em Paris ; Mário Pedrosa, o crítico de artes, se envolveu de corpo e alma na defesa dele durante a celeuma que se seguiu à volta do pintor ao Recife, trazendo na bagagem uma exposição que teria um efeito bomba. Isto porque nela já despontava sua ;migração; para o abstracionismo, que resultaria num gênero de choque cultural na mauricéia.

Confluência

Ali, ele foi submetido a um inusitado julgamento que beirou à execração pública por conta da visceral reação do ainda agonizante academicismo da velha Escola de Belas Artes de Pernambuco. E aqui, outra vez, se evidencia uma confluência em relação à retrospectiva da obra do artista em Brasília. É o mesmo Pedrosa que trouxe para a cidade, nas vésperas de sua inauguração, em 1959, um congresso internacional de críticos de arte de enorme repercussão.

Naquela ocasião, juntando-se com proficiência ao espírito que norteou a criação da última e eloquente obra modernista no Brasil com a construção de Brasília, o autor de Dimensões das artes, num lance de clarividência, propõe para a cidade que nascia a implantação não de um museu convencional, mas de um espaço integrado à nossa paisagem e realidade e que abrigasse o que chamou de ;um museu da civilização brasileira;. Evidentemente essa ideia jamais foi concretizada, mas lembramos nesse momento o quanto ela continha de antevisão e compromisso com o futuro e significado de Brasília.

Presente à urbe

Esse episódio incorpora, de certa forma, o grande padrinho de Cícero Dias ao grupo de velhinhos, não esquecendo a figura do paisagista Burle Marx, todos geniais, que nos olham do andar de cima, talvez nessa hora congraçados com o pintor e que juntos deixaram um legado que ressoará para sempre no cenário e na cultura da capital da república e do país. Recordamos essas circunstâncias e coincidências, porque elas nos induzem a uma prazerosa identificação com a exposição do CCBB, cuja fruição têm tudo a ver com a incorporação do grande Cícero Dias como um companheiro dessa inarredável viagem e onipresente experiência modernista entre nós. Acorramos todos a vê-la como um presente à nossa urbe.

Em tempo: chamamos a atenção do prezado leitor para a exibição do nosso filme Cícero Dias, o compadre de Picasso, em reprise no Cine Brasília, em alusão à retrospectiva e como homenagem ao saudoso e consagrado artista.

Vladimir Carvalho é diretor do documentário Cícero Dias, o compadre de Picasso


Cícero Dias ; Um percurso poético
Exposição retrospectivas com 126 obras do artista pernambucano. Local: Centro Cultural Banco do Brasil. De terça a domingo, das 9h às 21h. Classificação indicativa livre.

Cícero Dias, o compadre de Picasso
Documentário de Vladimir Carvalho.
Em cartaz no Cine Brasília. Hoje e amanhã, às 14h.

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